terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Tempo




Ponto de partida: parte baixa da cidade, nos pés de uma colina suave. Um aglomerado de árvores e casas onde começa a estrada da lajinha. É por ela que vou começar uma corrida a fim de fazer um pouco de exercício nesses dias quentes e chuvosos de verão.

Desço correndo a rua de paralelepípedos - uma descida empinada que faz vibrar os ossos a cada pisada forte com meu tênis 40 e uma meia sem elástico. As bochechas vibram também com o impacto daquilo.

Chego enfim à esquina e viro para outra rua que desce (agora uma descida suave). Um jardim plano e imenso apresenta-se aos poucos enquanto me desloco. Á medida em que me movo, o olhar penetra em silhuetas, fendas, ocasos luminosos e aparições rápidas de seres que não posso distinguir direito agora pois quase bato em alguma coisa que surge na minha frente.

Na verdade era uma carroça, ou melhor um cavalo - pois ele puxa a carroça e portanto vem primeiro. O carroceiro era um cara gente boa e tirou um pouco o cavalo da trajetória.no momento em que busquei a parte de cima da calçada estreita e mantive o caminho até a Lajinha.

Chego então à margem do rio, um pedaço que banha a parte baixa da cidade. Há bancos e sombras em volta de mangueiras à noite procuradas por casais que ali podem namorar por horas. Uma espécie de refúgio onde também ficam andarilhos, pescadores e outros seres solitários.

Depois de 10, 15 minutos de corrida geralmente fico cansado. As pernas começam a doer e uma delas especialmente. Não lembro qual. Em algumas vezes chego a parar de correr e volto para casa. Noutras posso continuar o exercício. A dor passa. Estou agora numa estrada de terra.

O exercício se torna mais árduo com a poeira dos carros. Incomoda quando passam com as pessoas olhando para a gente. Devem pensar: que faz este aí correndo? As moças olham e depois se viram sorrindo. É bom. Os mais velhos ficam de cara fechada. Pode ser a poeira no rosto. Era um fusca antigo e empoeirado lotado de gente. Para andar ali é ótimo.

Os pulmões agora estão contra minha vontade de continuar a tarefa até o final. O ar é pouco e o sol está forte. Completamente molhado de suor forço a barra e continuo marchando sobre a terra dura. Bois, bezerros, bichos com chifres e sem chifres, grandes, médios e pequenos comem o pasto.

Um cheiro de estrume fresco fica no ar quente do verão dessa roça. E eu ali correndo. Diminuo então o ritmo, estou a cem metros do rebanho espalhado entre morros de cupins, numerosos nessa região e que se misturam aos vales e planícies do lugar. Passo devagar entre esses animais que tem o estranho hábito de ficar mascando grama e olhando fixamente para a gente.

Escuto o marulhar da água lá embaixo. São uns oitocentos metros até o final. Há uma ponte depois de uma curva à esquerda. É a ponte onde antigamente se fazia o caminho até a Varginha. Depois da estrada nova ficou conhecida como Ponte Velha. O nome é apropriado.

Não tem as proteções laterais em alguns pontos. Dizem que por ali passaram automóveis e caminhões que despencaram rio abaixo. O vento que sopra entre as árvores e chega em rajadas- o que também colabora para tornar tudo ainda mais bucólico.

O rio passa caudaloso embaixo lambendo as pedras eternas de seu leito. Acompanho com o olhar o rio até sumir no horizonte alaranjado e o ponto onde preciso desviar-me do reflexo dos raios do sol na água.

Fim de corrida, ando em passos lentos. Satisfeito com a viagem busco a sombra. Sentado na grama, descalço, procuro quase não pensar. Apenas tenho a sensação de que vivi mais em 20 minutos que alguns dias, talvez meses da minha vida.

Não apenas pelo exercício e seus benefícios. Mas pela idéia de que o tempo às vezes parece voar como tico-ticos, às vezes parar como a Lajinha. E nós não temos o menor controle sobre isso. Tanto tempo falta e tanto tempo sobra...E a vida aí para ser vivida - 2010 que o diga.

sábado, 12 de dezembro de 2009

A arte imita a história



Um tanto entediado pelo noticiário farto e cansativo, vasculho a internet – não em busca de novidades, mas para bisbilhotar a vida de personagens históricos. Escolho Tiradentes, talvez o nome mais facilmente lembrado entre as figuras brasileiras, praticamente um herói nacional.

Joaquim José da Silva Xavier, figura que qualquer pessoa no Brasil que possa ler este Literário conhece, viveu em Vila Rica, hoje Ouro Preto, e inspira conversas que ficam ainda mais saborosas nas subidas e descidas da bela cidade mineira.

Em Ouro preto conspira-se o tempo todo. É algo que está nas ladeiras, nos telhados, na expressão de alguns anjos barrocos, nos malandros das esquinas, no olhar das mulheres, nos agitos noturnos das repúblicas, nos bares, em todo canto.

Basta dar asas à imaginação, puxar um pouco pela memória e começar a olhar em volta. O lugar onde a cabeça de Tiradentes ficou exposta por mais de dois anos por conspirar contra o império português está lá, agora, como monumento ao mártir. Em volta, tudo permanece: o casario, as igrejas, as pedras das ruas.

E um mistério ainda paira pelas ladeiras, por mais de dois séculos: onde foi parar a cabeça de Tiradentes? Dizem alguns que está na casa de Bernardo Guimarães, poeta e contista fascinado por Ouro Preto, onde nasceu, viveu e morreu no século XIX. É dele o conto “A cabeça de Tiradentes”, que como poucos escritos, descreve, esplendidamente o modo de vida na cidade durante o período em que foi capital da província de Minas Gerais.

Tempos de fartura, época em que o ouro era abundante e mexia com a vida de todos. Tanto que era comum as negras se enfeitarem para os festejos dando brilho aos cabelos com a poeira dourada que sobrava das lavras. “...e edificaram mais de um templo magnífico com as migalhas de seus senhores.’ A leitura de Guimarães – o Bernardo e não o João, é uma breve e divertida aula.

A abundância em Ouro Preto agora é coisa do passado. O centro histórico está bem conservado, mas a cidade cresce de forma desordenada na periferia – como quase todo município de porte médio do interior do Brasil. Dos tempos de capital da província e berço da Inconfidência, Ouro Preto ainda cultiva o gosto pela cultura e a pluralidade de pensamento.

Museu e cenário a céu aberto, Ouro Preto foi palco da encenação em praça pública do martírio de Tiradentes, coisa de alguns anos atrás – a data não sei ao certo, mas o que segue aconteceu de fato e quem quiser e puder que ajude nos comentários.

Bem, a tal peça foi encenada em comemoração ao dia da Inconfidência, 21 de abril, e o roteiro foi fiel à história. Depois do enforcamento no Rio de Janeiro as partes do corpo do alferes foram mandadas para várias partes da colônia. A cabeça veio para Ouro Preto. A réplica usada pelos atores também foi colocada no mesmo lugar onde, em 1792, estava a cabeça enfiada em uma estaca, método usado para intimidar quem ousasse conspirar contra a coroa portuguesa.

Conta Bernardo Guimarães que a cabeça ali ficou por 2 ou 3 anos. À medida que o tempo passava, diminuía o interesse e a perplexidade por aquele símbolo da mão forte da coroa sobre a colônia. Em uma noite em que só estava a caveira solitária a se debater com o vento, enquanto o sentinela dormia, eis que um gaiato a rouba e o guarda só tem tempo de ver o vulto sumir na esquina da rua das cabeças – situada logo acima da praça.

Sim, rua das cabeças, como mais uma vez ensina o conto: “...a origem desse nome sinistro vem de que aí se fincavam na ponta de estacas as cabeças dos míseros enforcados pelas esquinas dos becos”. No alto da rua, diz-se que viveu um velho de vida reclusa e que, especula-se até hoje, seria o ladrão da cabeça verdadeira. Ao contrário das vizinhas, a casa onde viveu não ficou de pé para ajudar a contar a história.

Na peça, a cabeça feita de gesso também foi erguida na praça e ficou dia e noite sob a guarda de um sentinela. Não era ator, mas policial ou funcionário da prefeitura – não me lembro bem, mas isso não tem importância.

Ocorre que em um momento de descuido ou esquecimento mesmo, ninguém viu a cabeça sumir de novo! O caso gerou mal-estar, foram feitas investigações e buscas até a polícia encontrar um suspeito. No depoimento, o homem disse que não poderia mudar a história.

Como o personagem de Bernardo Guimarães, sabia onde estava a cabeça do mártir, mas não poderia dizer. E o caso foi encerrado sem que a cabeça falsa aparecesse. Assim como a verdadeira nunca apareceu.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Sobre chatos e vizinhos



Nos encontramos na esquina. Eu, a caminho do supermercado; ela, de volta. Ao passar por mim, a pequena senhora – com menos de metro e sessenta de altura e mais de 80 anos de idade, disse de novo: “A boca não pára, toda hora tem que comprar um trem!” O sotaque mineiro destacado na última sílaba.

Trem, que na verdade quer dizer outra coisa, quer dizer comida, basicamente. Víveres. “A boca não pára...”, completa ao passar por mim. Não consigo segurar o riso, o comentário da vizinha quebra o gelo da manhã sem graça. É como se dissesse: “É preciso fazer alguma coisa, precisamos sobreviver nesse mundo”.

Personagens de bairro, figuras que a gente vai se acostumando, pois sempre as encontramos naquela hora besta, quando estamos de calção e chinelo a caminho da padaria. Gente a quem não devemos satisfação alguma, mas que se dão ao trabalho de perguntar-nos: “Como vai?”

Mesmo mergulhados no mais absoluto mau-humor, esse tipo de comentário gratuito acaba por nos deixar mais leves, menos sisudos. Justamente no momento em que gostaríamos de passar incólumes, sem dar papo a ninguém.

Não podemos dizer o mesmo de outras situações e ambientes, como no trabalho, em casa ou na escola dos filhos. Nesses locais, nunca passamos despercebidos, e, no entanto, há dias em que faríamos de tudo para não sermos notados.

Existem vários motivos para essa reclusão voluntária. A chatice é um deles, em todas as suas nuances e variações de intensidade. Há os chatos que se aproximam da gente por interesse, por exemplo, gente que acha que pode ser dar bem a todo instante, como se isso fosse possível.

Esses geralmente estão no ambiente de trabalho. Acham que qualquer situação é oportuna para “ganhar uns pontinhos”, mostrar serviço, “assinar” determinada atitude, frase, ação, ou algo que lhe renda um “Puxa, que bom”, dito por alguém hierarquicamente superior. São os famosos e onipresentes puxa-sacos.

Tem gente que é chata mesmo, já nasce assim. Esse tipo de chato costuma ser da família ou é amigo, algum amigo próximo, e a gente praticamente é obrigado a conviver com eles. São “de casa”, não se incomodam de levar um corte, e mesmo ignorados permanecem onde sempre estiveram, por total falta de mobilidade social. Malas, enfim.

Finalmente chegamos aos chatos da escola dos filhos. Poderia ser aquele recreador mais animadinho ou a professora feia com ar de rigorosa – mas geralmente são os pais dos outros alunos. E o momento máximo da chatice na escola dos filhos acontece em ocasiões especiais, como o Dia dos Pais. Tudo bem, é legal estar ali com os pimpolhos e tudo, mas sempre tem aquele mico...

Não, não é o mico o chato em questão, nem a brincadeira em que você coloca um saco na cabeça e esbarra em todo mundo antes de encontrar o garoto. Essa até que é divertida. Duro mesmo é ter que conversar com gente que você não conhece (geralmente pessoas bastante diferentes de você), sobre assuntos que não lhe interessam (normalmente carro, futebol ou religião) , em um dia em que você poderia estar fazendo outra coisa, como um churrasco, por exemplo.

Mas a vida é assim, e temos que cumprir a agenda. Afinal, como diz a senhorinha que cruza comigo (ops) quase todo dia na esquina, “a fila tem que andar”. Nas palavras dela: “A boca não pára e toda hora tem um trem para comprar”.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O falso perfeito



Certa vez um vizinho disse estar satisfeito simplesmente por respirar. “Acordo e quando percebo que estou vivo, agradeço a Deus. O resto é lucro”. Assim como eu, ele tem filhos e obrigações como: pagar escola, aluguel, supermercado, farmácia.

Além disso, deve se preocupar com o futuro das crianças, todo pai se preocupa com os filhos. Daí ter as mesmas dificuldades que milhares de pessoas, mas... por quê ele não se queixa?

Também gostaria muito de chegar a esse estado de satisfação, completude, convencer-me de que está tudo bem, a vida é boa e que qualquer coisa diferente de estar feliz por estar vivo é frescura ou coisa que o valha.

Fiquei a pensar como seria a vida desse meu vizinho. Como só o vejo nos finais de semana, a imagem que fica é a de sujeito boa praça, sem maiores vaidades e que sabe levar as coisas sem ficar a se aborrecer à toa. Mas quem deve saber mesmo é a mulher dele, os filhos e amigos próximos.

Eu também acho uma boa estar vivo e acredito que é melhor viver sem complicar muito. Ficar reclamando o tempo todo só torna tudo pior, embora em alguns casos seja necessário. Afinal, fechar os olhos para todos os problemas não é sinal de sabedoria; é fuga ou, no mínimo, displicência.

No extremo oposto desse meu vizinho existe outra categoria de pessoas que implicam com tudo. Com esse tipo de gente não há acordo, é tolerância zero. A menos que o erro seja dele. Nesse caso, surge uma nova faceta, a do dissimulado.

Esse tipo quase perfeito, que prefiro chamar de ”falso perfeito”, geralmente é encontrado no local de trabalho. Ele se beneficia dessa espécie de hipocrisia corporativa existente em todo lugar onde há um chefe, um ou dois puxa-sacos, meia dúzia de iniciantes ambiciosos, uma secretária burra (com sorte, gostosa) e quatro ou cinco funcionários água com açúcar – daqueles que não interferem, servem apenas para formar quorum.

Essa composição é ideal para um “teatro do oprimido” tosco, recheado de insinuações, grosserias, teorias risíveis sobre jornalismo e outras baboseiras. Há quem fique profundamente impressionado, é o chamado assédio moral, do qual são vítimas os pobres diabos que morrem de medo de perder o emprego. A essa tarefa, os “falsos perfeitos” se entregam com prazer indisfarçável.

Mas nem todo dia é do caçador. Sempre chega o momento em que essas almas inseguras sofrem por não conseguirem camuflar as próprias limitações. Nessa hora cai a máscara, mas como o quintal é dele... pano rápido, nada acontece.

O falso perfeito também existe fora das empresas, mas tem as asinhas curtas. Quando não há interesse definido, cargo, salário ou posição, fica muito mais fácil distinguir sabedoria de babaquice – basta os interlocutores certos. Mas aí já é outra estória.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Respostas




Procurava por respostas e então consultei os monges. Descobri então a nobreza da virtude. Mas não aprendi como elevar-me acima da vida mundana. Sequer consegui livrar-me de alguns pequenos vícios, em mim impregnados como uma segunda pele. Forcei arrependimento, convencido que estava pelas palavras puras, e travei luta interna contra os pecados do corpo, da mente e da alma. Depois de um começo promissor, acabei de novo caindo em tentação. Ouvi: és um humano miserável, fraco e sem vontade.

Busquei então a companhia dos intelectuais, humanos como eu, mas donos de um pensamento sofisticado e símbolos da grandeza da raça. As palavras certas, no lugar certo poderiam inspirar-me e operar o milagre do renascimento. Mas tantas verdades ditas sem pudor quase me ferem de morte... Espantado, fugi, protegido justamente por minha humanidade falível e inconseqüente. Melhor não pensar, inferi, e de novo voltei às antigas perguntas.

Insatisfeito e melancólico, tive então a necessidade de proteção. Busquei-a nos poucos amigos, nos braços de gente próxima. Recebi carinho, recebi atenção. Mas quando abri meu coração por completo senti o diálogo se tornar um monólogo. Os braços que me envolviam se afastaram e, tal qual objeto decorativo, exemplo vivo de desgraça por ninguém desejada, colocado fui a um canto. E dos outros me tornei deplorável criatura, exemplo do que não ser. “Pare com isso!”, foram as últimas palavras que escutei antes de dar as costas e de novo partir.

Cansado, atordoado, fechei-me em pensamentos e chorei sozinho. O espelho se tornou ameaçador e insuportável. A alegria das crianças, o vôo dos pássaros, o caminhar distraído das moças, o zunir do vento nas árvores, o azul do céu, o marulhar das ondas, o balé dos peixes, o som das mais belas canções – nada me consolava.

Perdido fiquei a olhar o mundo pela janela. E não compreendia o sentido daquilo tudo, afinal. Respostas. Lentamente o silêncio foi preenchendo o vazio daquela manhã. E eu não desejava mais do que o silêncio naquele momento. E formulei uma pergunta diferente: Por que o silêncio em vez das respostas? Menos confuso, menos triste, menos atordoado, ergui o corpo, fechei a janela e passei um café.

Olhei de novo minha imagem no espelho e lembrei-me que nada é para sempre. Um dia, não sei quando, vou partir. Provavelmente sem ter a menor idéia do destino. Quando esse dia chegar, estarei pronto, independente de ter sido preparado, mesmo contra a vontade, ainda que não compreenda o sentido. Nesse dia, possivelmente irei olhar para trás e ver que perdi muito tempo procurando explicações. Talvez não, mas aí isso realmente não terá mais tanta importância.

Do pó vieste e ao pó voltarás. A única certeza desse mundo, segundo os monges, intelectuais e pessoas como eu. Nesse dia acho que terei as respostas, sem muita complicação. Mas sendo assim não é preciso pressa. Nem para viver, nem para morrer. Se viver sem pressa de encontrar respostas, estarei dando um passo e tanto - nesse momento descobri. E agora, o caminho parece bem mais simples. Nem quero saber por quanto tempo. Essa resposta eu terei, todos teremos, de uma forma ou de outra, cedo ou tarde. Portanto, não importa.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Reminiscências



Wish you were here. O som faz a imaginação viajar no passado... A música foi gravada na década de 70 pelo Pink Floyd, mas a lembrança que tenho é dos anos 80. Vivia cercado de amigos que tinham certeza de que tudo era para sempre: a amizade, o gosto pelas mesmas coisas, o tempo que tínhamos para viver.

Não importava o dia: segunda ou sábado, o estado de ânimo era sempre o mesmo, uma sensação boa de quem não quer perder um só minuto da vida. Nesse instante, senti algo parecido com auto-piedade. Estou apressado a caminho do trabalho, a bolsa e a cabeça cheia de compromissos, preocupações, prazos e metas a cumprir.

Os acordes da música me consolam. “So, so you think can tell...” A cidade ao redor em nada se parece com os lugares onde perambulávamos com passos decididos, o riso largo, cabelos longos, a mente tranqüila e o corpo esbanjando vigor.

Muda o som e ainda estou na metade do caminho. “Todo dia a insônia me convence que o céu faz tudo ficar infinito”. O Barão Vermelho de Cazuza agora é o centro das atenções em minha cabeça preguiçosa.

Engraçado pensar que 20 anos depois de Wish you were here, “Pro dia nascer feliz”, de Frejat e Cazuza, estourava nas rádios e nos fazia sentir que sim, haveria rock brasileiro para ouvir depois de Raul Seixas e Rita Lee.

A novidade foi recebida com entusiasmo, mas passou. Tudo passa. Muitos amigos sumiram, assim como minha gana de acompanhar tudo o que sai na mídia sobre música. Perdeu um pouco a graça. Outro dia li uma matéria que tinha o Jota Quest e o Babado Novo falando de “pop-axé”. Não dá.

Não no meu ouvido. Estou atrasado, os ponteiros do relógio avançam sem dar trégua. Uma moça se levanta para descer do ônibus. É morena e tem os cabelos longos. O corpo bem feito, uns 18, 19 anos, talvez. Um instante de atração física se passou até que lembrei da minha filha. Não que tenha ficado com remorso ou constrangido, afinal olhar não tira pedaço.

Lembrei de minha filhota de 12 anos porque em pouco tempo ela vai ter a idade que eu tinha quando curtia Pink Floyd e Barão Vermelho, entre outros tantos sons. E vai ter sentimentos parecidos, claro, à maneira dela. E depois dela virá meu filho, que hoje tem 7 anos.

A garota gosta de música para dançar – inclusive axé, para leve desgosto do pai. E o garoto eu ainda não sei. Por enquanto, diz que torce para o Fluminense (não sei se para me agradar). Quando chegar o dia deles lamentarem as novidades que substituem coisas muito melhores (como é o caso das bandas de rock de hoje em relação às de ontem) talvez eu seja apenas uma lembrança. Mas isso ainda vai demorar, espero.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Corrida de obstáculos



Enfiou a chave com cuidado... Girou para a esquerda de mansinho, assim e a cada estalo mínimo que saía de dentro do tambor fazia uma careta. “Seis da manhã, Romualdo. Dessa vez tu exagerou irmão”, pensava. Quanto finalmente conseguiu entrar deu de cara com o relógio que marca: Seis e dez! “Quase acertei”.

Um domingo que já se anunciava de sol, desses de gente na rua, crianças em bicicletas e senhores de moleton fazendo caminhada. Mas para o Romualdo, com aquela cara de ontem e bafo de bebida, não ia dar.

Tudo bem. "Foi só para extravasar um pouco. Não peguei ninguém – mas até que rolou uma troca de olhares, ora com a mulata generosa que insistia em me reparar, ora com o cara que estava com ela, que ficava vigiando o bar inteiro! Esse sim eu diria que não pegou nada mesmo”, Romualdo feito retardado ficava formulando meio que os melhores momentos da madrugada na cabeça.

O ruim vai ser explicar para a mulher que não tinha passado disso mesmo. Claro que a história que ele ia contar não era bem essa mas pelo menos já tinha um roteiro inicial e... a merda é que elas nunca acreditam. Bom, é melhor tirar essa mesinha da frente, que o passo ainda não está firme...

Beleza, missão cumprida. Agora é só...Deus! O abajur...Como irá fazer para se desviar desse objeto infeliz que fica no caminho para o banheiro? É um corredor muito estreito, e ele terá que ser percorrido com extremo equilíbrio e responsabilidade, porque logo depois tem o aparador e aquele monte de porta-retratos.

Calma, calma. Devagar, assim, devagarinho...está quase lá. Pronto, enfim o banheiro. Ué...todo arrumado, parece que ninguém usa isso há séculos! Nem toalha tem aqui, gente. Cadê o papel higiênico? E essa cueca?

Cueca? De quem é essa cueca suja e desbotada? Romualdo fica doido. Indignado. Sente uma pontada no peito. Amedrontado, solta um berro: Marta! Marta! De quem é isso aqui? Marta! Marta! Ninguém responde. O que está acontecendo?!

Romualdo, meio zonzo, saiu do banheiro. Agora, não sentiu vontade de seguir as regras desse código subliminar que rege as relações humanas, amorosas e não-amorosas, mas que incluem o interesse comum por algo que não tem como ser regido por um, apenas por dois.

Sem cerimônia e nenhum cuidado esbarrou no aparador, derrubou o porta-retratos, quebrou o abajur, quase chorou de dor ao bater a canela na mesinha da sala e com muita dificuldade abriu a porta do quarto de casal. Não havia ninguém em casa.

“Essa ingrata está mesmo me traindo”. Um pensamento piegas o pegou de surpresa e, com a certeza que só os cornos têm, procurou pelo celular que passara a noite toda desligado e ligou, ligou e ligou. Infelizmente, só uma gravação respondia: “Este celular está fora da área de cobertura ou desligado”.

“Tu, tu, tu, tu”. Pela quinta vez ouvia aquele som de telefone ocupado que sempre toca depois da mensagem de “Esse telefone está fora da área de cobertura ou desligado".Iria atrás dessa mulher ou deveria, quem sabe se resignar?

Será que ela o traía há muito tempo e ele sequer suspeitou?. Claro! Aquele jeito de mulher dedicada e ao mesmo tempo um furacão na cama, era tudo para deixá-lo maluco de amor e cego de confiança.

Se não fosse essa a última vez haveria uma outra, quando seria a próxima? E ele acreditando que aquela torta fantástica dos finais de semana e feriados era para feita para Romualdo. Tolo, idiota, cafajeste de quinta categoria. Idiota. Puta que o pariu!

Calçou de novo os sapatos, e nervoso mal conseguiu dar nós nos cadarços. Assim, meio sem voz, Romualdo voltou para a rua. Pegou um táxi e se mandou para a casa da sogra.

Acordou a velha com uma insistente campainha às sete da manhã e disparou:

- Cadê sua filha?

‘Eu é que sei? A mulher é sua”, respondeu a senhora.

- Não é mais minha mulher, é só filha sua. Mas como ela não está aqui?

- Não está, ora... O que houve Romualdo?

- Nada, não houve nada.

E saiu de novo, antes que a dona Rosinha terminasse de lhe oferecer um café, essas coisas. Faminto, agora andava já sem dinheiro para o táxi e decidiu ir até o ponto de ônibus. “Ela não podia ter feito isso”, pensava mas sem tempo de terminar porque tomou um puxão de lado. Alguém segura a sua mão com força por trás.

Vira-se para ver uma cigana de vestido florido e sorriso desdentado, embora com dois ou três dentões de ouro, outro que parece prata mas de repente é obturação antiga...ela pede para ler sua mão. Transtornado ele deixa, pela primeira vez na vida – já que não acreditava nesse tipo de coisa.

A dupla vai até a escadaria de um prédio e, no cantinho perto da planta que decora a entrada a cigana começa, sob o olhar preguiçoso do porteiro, que assiste à cena da mesinha atrás do vidro:

- Você está sofrendo...
- Sim, sim, estou.
- É dor de amor.
- Como sabe?
- Marianita tudo sabe.

Ele não quer ouvir mais nada. Tira os cinco reais que lhe restam no bolso e entrega para a mulher.

Resolve voltar à pé para casa. Não se conforma. Súbito, tem uma idéia. Talvez ainda exista uma chance. “Não vou perder minha mulher assim, fácil. Ainda resta o cartão de crédito”, agora liberado pela operadora depois dele ter suado sangue para pagar a fatura do mês passado.

Entra na joalheria e escolhe um par de brincos de ouro – o mais bonito da vitrine. Quase dois mil reais. “Tomara que funcione, nem sei como vai ser se ela me trocar por aquele infeliz da cueca”, pensou.

Chega em casa, todo suado. Abre a porta e Marta está na sala, com a cara amarrada. Ele não diz nada antes de estender o presente com as mãos, como um menino.

- Olha, é para você.

Ela pega o presente, abre, e um sorriso se abre, seguido de um abraço carinhoso. Marta vai logo experimentar, e volta do quarto radiante com o brinco na orelha.

- É lindo, amor.

Ele, meio confuso, mas feliz da vida, diz sem jeito:

- Você merece muito mais.

Ela senta no sofá e diz para ele que na noite passada nem esperou ele chegar. Teve que sair, por volta das 21 horas, para acompanhar uma amiga até a Santa Casa. Esquecera de levar o celular, até porque nem ia adiantar. Estava completamente sem bateria.

- A mãe dela teve um AVC e a minha amiga, a Suzana, lembra? - Ele faz um gesto afirmativo com a cabeça. Marta continua:

- Pois, é, ela estava muito deprimida, e me pediu para acompanhá-la... Fiz companhia para ela a noite toda. Estou um caco e agora posso finalmente dormir um pouco. Espero que não fique chateado, mas pouco antes de sair dei uma faxina na casa e usei uma cueca sua para limpar o banheiro. Está toda manchada de água sanitária, além de ter acumulado sujeira do chão, das paredes... É melhor jogar fora.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Pesadelo



Fim da linha. Não tinha mais jeito, estava encurralado em um lugar escuro e fétido, depois de uma fuga mal empreendida por vales e montanhas que nem pode olhar direito tamanho era o pânico de ser apanhado.

Desceu barrancos, atravessou corredeiras a nado, pulou cercas e muros, correu dos cães, desviou-se das pedras e outros objetos atirados em sua direção. Horas e horas correndo, alta adrenalina, o coração querendo sair pela garganta.

Não tinha coragem de olhar para trás, a ameaça cada vez mais próxima. Momentos de agonia, desespero e um sofrimento sem fim. Olhou para o lado, numa tentativa ainda de encontrar uma saída. Não dava para enxergar nada, era o breu.

Encostou-se no paredão úmido e suas mãos sentiram o musgo agarrado na pedra, uma fortaleza vertical onde era impossível uma escalada salvadora. Suava frio e já não raciocinava. Nem sabia como entrara em tamanha enrascada.

Um grito. Foi o que lhe restou fazer. Um grito que lhe saiu das entranhas e expulsou os demônios aprisionados no peito. Um grito de som indescritível, que ecoou no paredão e que fez de repente surgir um clarão acima da cabeça e que foi tomando conta do espaço em torno daquele corpo estremecido de horror.

Foi quando acordou assustado depois do sono pesado e um ou mais pesadelos dos quais nem se lembrava direito. Apenas desse, o mais recente, pouco antes de despertar. E foi o suficiente para lhe resgatar um suspiro de alívio. Levantou-se e foi até o banheiro lavar o rosto, escovar os dentes, tirar da boca o ranço e ver a própria cara no espelho.

No espelho, um bilhete colado com chiclete: “Adeus”. Sentou-se no vaso e chorou feito criança. O fim, agora, era real. A dor que sentia também.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A burrice da alma



A burrice da alma corresponde a um estado de invalidez. Cega os sentidos e endurece o coração. Impede que percebamos as sutilezas dos discursos, as nuances dos desenhos, as maneirices dos gestos.

A burrice da alma é uma espécie de cegueira, induzida pelas falsas certezas e aprisionada pela lógica. Manipulada pelos lugares-comuns da existência. E alimentada pela crença no óbvio.

A burrice da alma é uma espécie de surdez. Esquecemos que da vida nada se leva, apesar de termos ouvido isso inúmeras vezes. Negamos ao outro uma segunda chance, quando acreditamos ter ouvido o suficiente para nos fazer crer que o outro é a causa de nossos males.

A burrice da alma não tem limites, cresce como erva e se espalha como fumaça. Aumenta na mesma proporção em que deixamos de vivenciar pequenas emoções. Começa não sabemos como nem quando, e se fortalece sem que nos demos conta, mutilando os sentimentos que possam, de alguma forma, ameaçar e confundir nossas convicções.

A burrice da alma só pode ser combatida se permitirmos que uma lágrima escorra sem culpa nem vergonha. Somente quando me deixo distrair sem preocupação nem pressa, posso enxergar além do horizonte delimitado pelas minhas crenças. Apenas quando percebo que alguns momentos encerram um saber íntimo do qual só o ser humano é capaz. Viver é compreender que a vida é frágil e bela, ainda que nos exija estar sempre de pé todos dos dias, por mais que isso seja uma rotina indesejável.

A burrice da alma é um fardo que não precisamos carregar, mas que dele não abrimos mão por medo do desconhecido.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A lei



O homem tinha o rosto atordoado. Fora parado pela polícia e tinha que se explicar. Estava em um fusca velho (39 anos era a idade do carro), apresentava sinais de embriaguêz detectado pelo bafômetro que não se recusara a soprar. “Está certo, está certo. Eu to errado, está certo”, dizia entre soluços e lágrimas à repórter de TV que aparecera rápido. Era o tipo de situação que interessa, rende matéria, porque é muito engraçado.

“Se o sujeito soprar o bafômetro mostra, se não soprar esconde, coloca um efeito, esconde o rosto”. A regra do telejornal é clara. Não se sabe qual o princípio que rege esse tipo de postura, mas é a lei. E o coitado teve a cara estampada para deleite dos que se divertiam vendo a cena de gosto duvidoso.

Pouco depois, outra pauta: um acidente com um caminhão de eletrodomésticos que teve a carga saqueada por motoristas que passavam pela BR. A maioria em bons carros (seguramente com menos de 39 anos de uso – ao contrário do fusca) e que pararam e colocaram no porta-malas as telas de LCD, home-teathers e outros brinquedinhos novinhos em folha. Foram interceptados pela Polícia Rodoviária Federal. Agora, a ordem era inversa: evita mostrar os rostos, são suspeitos, estão protegidos pela prerrogativa de que ninguém é culpado antes de condenação formal pela Justiça.

A matéria é exibida sem que essas pessoas sejam expostas, afinal, existe o risco de um processo com fins indenizatórios. Na sala de exibição, ninguém diz nada, a matéria não tem o mesmo apelo da anterior. É assim…

Tive pena do homem do bafômetro, por mais que saiba que é perigosíssimo dirigir depois de beber. Mas também fiquei desapontado diante dessa covardia que é proteger quem representa ameaça – mais precisamente ameaça financeira ao patrão em caso de processo na justiça. E me pergunto que justiça é essa?

A resposta vem logo: a mesma justiça que oprime os fracos, sem recursos, sem cultura, sem respaldo, sem conhecimento, sem dinheiro, sem amigos na imprensa, sem esperança, sem nada. E que beneficia os minimamente preparados para se defender, até mesmo quando estão descumprindo a lei.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

A segunda chance



Carlos dorme, vira-se de um lado para o outro. Abre os olhos de repente. Levanta-se e
vai até a cozinha. No caminho vê um envelope embaixo da porta. Mesmo na penumbra abre e consegue ler o bilhete: " Favor comparecer ao Hemonúcleo Central urgente para tratar de assunto de seu interesse."

- Carlos esta confuso. Tudo esta confuso, o quarto gira em torno dele. Ele diz para si mesmo: - Não deve...Nao pode. (Vira a cabeca para o outro lado. ) Não pode ser...será?
Atrás dele parte da janela mostra o dia comecando, clareando objetos no quarto. O relógio marca 5h30min. "Vou resolver essa historia hoje mesmo", pensou. Tomou banho, um cafe rapido e saiu.

O relogio na parede marca 7h30 min. Carlos está sentado ao lado de outras pessoas numa sala. Na parede, uma placa diz - Hemonúcleo Central. Ao lado tem um calendario. Carlos tem o ar apreensivo. Poe a mao no queixo e sem se deter em nada ou ninguem, olha para o vazio. Comeca a se lembrar da ultima vez que estivera ali.

Foi ha uma semana. Ele tinha um ar feliz e bem disposto. Ao contrario de agora, conversava com as pessoas em volta, brincava com as criancas. Tinha ido doar sangue. Na vez dele, levantou-se e dirigiu-se a atendente.

ELA
- Vai doar para quem?
CARLOS
- Sérgio Gouveia.
ATENDENTE
- É a primeira vez?
CARLOS
- Não. Meu sangue já circula nos outros - e ri, no que a atendente olha para ele fixamente. Tem os olhos verde-agua, morena lindissima. Ele para de rir, ela termina o cadastro e diz para Carlos se dirigir à sala de doacão. Carlos agradece, tocado pela beleza da moca. Faz a doacão. Na saída, é ajudado a descer da cadeira. Coloca o esparadrapo no braco. Ainda conversa de novo com a atendente.
ATENDENTE
- O senhor vai querer o resultado do teste para HIV?
CARLOS
- Como? (Responde, surpreso)
ATENDENTE
- Quem doa sangue tem direito ao exame de HIV gratuito. Fica pronto em uma semana.
CARLOS
- Sim, quero - disse, forcando conviccão.

Quando voltou a si, o relogio marcava 8 horas. Ainda `a espera na sala do hemocentro, voltou a mergulhar em pensamentos. Lembrou-se de Manu. Manuela era o nome da gata. Aquele quarto colorido. Uma transa louca. Objetos pelo chao, Manuela grita, geme.
- Vai meu garanhão! Carlos, você é demais! Ele tinha uma expressão tranquila. Manu ainda disse suspirando: - Não queria sair daqui nunca mais...
Lembrou-se da cara de assutado quando olhou para o bilau. A camisinha, aberta, estourada.

- A porra da camisinha estourou! Disse despertando dos pensamentos, enquanto do seu lado um homem o olhava, atento.
Carlos recompos-se, levantou e tomou um gole de água. A mesma atendente gostosa ja nao lhe chamava tanto a atencao. Foi até a mesinha no centro da sala e pegou uma revista. Retornou a seu lugar na sala de espera. De repente, fecha a revista e vai ate o banheiro, se olha no espelho.

- Será? Mas ela parecia tão, tão... - Anda de um lado para o outro. A lembranca do corpo de Manuela a tortura-lo.
- Não! Definitivamente.

Carlos volta ao lugar na fila. Levanta-se e vai ate a atendente. Como penitencia, mexe negativamente a cabeca ao mirar a bunda da moca. Pergunta: - Vai demorar muito?
- So mais um minuto. (Diz a moca, e depois entra numa sala.)
- So mais um minuto! (Babucia Carlos. Depois vira-se para um homem que aguarda atras dele e diz - Ela nao tem nocao do que significa um minuto para mim.

Ah! Vida que e tao cara! E recita o trecho de um poema de Fernando Pessoa. Com cara de assustado o homem faz sinal de concordancia, mas depois se afasta um pouco.
A moca volta com um envelope na mao. Abre sem cerimonia e quando abre a boca a vista de Carlos se embaca. Ele desmaia, no que e socorrido pelas pessoas em volta.

Acorda no quarto do hospital. Pergunta ao medico - Quanto tempo eu tenho, doutor.
O medico diz - O bastante. Tem plano de saude? Voce foi atendido aqui mesmo, do lado do hemocentro e esse hospital e particular.
- Nao vou continuar meu tratamento aqui. Alem do mais, o senhor sabe que planos de saude nao cobrem esse tipo de doenca.
Carlos responde e olha o medico fixamente, mas parece ter o olhar perdido, como alguem sem esperancas. O Medico diz: Como nao? Voce precisa fazer uns exames, mas sao cobertos pelo seu plano.
Carlos continua a se queixar - E os medicamentos, doutor? Terei que arcar com eles de qualquer forma.
- Isso realmente nao tem jeito - disse o medico secamente, e ja se dirigia ate a porta quando Carlos comeca a chorar. O medico que ia saindo, se detem junto a porta.

Carlos esbraveja: Tudo culpa minha mesmo. Burro! Burro! (Grita entre solucos)
- Nao e para tanto...diz o medico. Carlos completa:
- Pensei com a cabeca de baixo, doutor. Homem e tudo idiota mesmo. E ainda comprei aquela camisinha vagabunda... Eu a conheci na mesma noite, doutor. Nos demos muito bem e acabamos no apartamento dela.
Lembrava claramente dos amassos, a cena dos dois se beijando. Continuou a lamuria: Foi magico...e tragico! Olha a minha situacao agora! Ela tambem, mas podia ter me contado. Que vai ser agora... (Chora)

A porta do quarto se mexe. Chega a atendente. - Senhor Carlos?
Carlos enxuga o rosto, tenta se refazer.
A atendente diz: Seu exame de HIV... Deu negativo. Quando o senhor vem doar de novo?

domingo, 9 de agosto de 2009

Carta ao meu pai



Hoje acordei tomado pela lembrança de meu pai, como já aconteceu milhares de outras vezes, mas sem que escrevesse sobre isso. Tanto mais difícil. É uma carta, que creio de alguma forma vai chegar ao destinatário, levada pela esperança de poder assim tapar alguns buracos, corrigir algumas falhas, dizer algumas coisas que não foram ditas.

Na verdade muito ficou por dizer. Mas nós dois convivemos o bastante para entendermos razoavelmente um ao outro. Por vezes o silêncio foi eloqüente: tanto para sufocar a dor, engolir o choro e aceitar teu olhar severo... como para confiar, esfriar os ânimos, aquietar. Calado, como querias; consenti, sem querer.

Bem mais tarde, há pouco tempo, vim a descobrir que em grande parte das vezes tinhas razão, pai. Porque agora sou eu a me enraivecer com as coisinhas de adolescente que assisto, pequenas teimosias e atitudes inconseqüentes que presencio. Hoje sei que isso não tem nada a ver com liberdade. É só chantagem, ou como dizias, má-criação.

Sinto falta das conversas na porta de casa. Tenho saudade dos finais de tarde, quando colocavas as cadeiras lá fora e nós ficávamos em volta – costume que durou até quando ainda tinhas forças. A vontade de ver a rua se foi ao poucos, por causa da catarata, não é? Sei que ficas satisfeito em saber que preservei, de certa forma, esse costume.

Lembro-me de como gostavas de trabalhar em casa, nos pequenos canteiros de verduras e legumes no quintal. É como se ouvisse agora tua queixa: “Não tenho mais como saber se os tomates estão verdes ou maduros.”

Hoje consigo ver além do que podem meus olhos, pai, porque enxergo com a sabedoria de quem viveu ao teu lado. Não sou como tu, absolutamente. Mas não seria metade do que sou, se não fosse por tua causa.

(*) Marcos Alves é jornalista.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Meu dia na cidade sem carro


Era um dia quente, um calor de fazer medo. A testa suando, aquele amontoado de carros, ônibus, motocicletas. Bizarra sinfonia de buzinas ordinárias, escapamentos estridentes, cantadas de pneus assustadoras e eu à pé. Bateu uma raiva. Pôxa, todo mundo indo embora e eu parado no ponto de ônibus.

Daí, pensei: mas o troço não anda! Aquela avenida enorme, com duas obras de alargamento nas costas, onde enfiaram um mundo de dinheiro e...nada. Tudo parado, amigo. Nada se move nessa segunda-feira lazarenta e preguiçosa. E eu com uma baita vontade de ter um carro.

Só tem um problema, não tenho grana. Há uma maneira: entrar em um desses financiamentos intermináveis, sem entrada, 80 prestações me separam do sonho. Imagino-me numa curva em um penhasco, dirijo meu conversível acompanhado de uma linda mulher. Cinematograficamente feliz.

Nesse instante, a brisa sopra meu rosto mas sou bruscamente cortado em meu doce barato pela fumaça preta de um caminhão velho e barulhento que passa raspando minha pobre orelha.

Deus, porque me abandonaste! Estou aqui no sol, nesse ponto cheio de gente, como eu, à espera do maldito transporte público. Lá vem ele, finalmente! Salto o buraco na calçada, esbarro na secretária (deve ser secretária, com essa roupa combinando) peço desculpas e me posiciono melhor para ver que não é o meu, que meleca.

Deu raiva de novo. Mas fico olhando esse montão de carro parado, e descubro que o trânsito – seja ele de carro, moto, ônibus, à pé, ele é a causa desse calvário todo. Claro que um automóvel (que nome) torna tudo menos complicado e confere uma certa independência aos cidadãos que, como eu, precisam se locomover (que palavra) nessa cidade.

Principalmente se tiver vidros escuros e ar condicionado. Mas é preciso ter calma, evitar o veneno do estresse. Afinal, a maior parte dos carros disponíveis não tem esse conforto todo. É um usado desses que me espera, caso eu leve mesmo adiante essa idéia de comprar um carro. Não sei não...O trânsito é feroz todo dia, e às vezes prefiro evitar aborrecimentos com coisas que não funcionam, como carro velho, por exemplo.

O problema todo é a falta de opções, não há metrô decente aqui em Belo Horizonte. Mas aí já é outra história.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

O corpo


A conversa se estendeu e o a noite chegou rápida. Riam bastante das noitadas, das festas, da vida de cidade pequena, tudo agora era só lembrança, assunto de amigos.

Daniel olhava a cidade que dali do alto da subida para o campo de aviação dava a falsa impressão de ser plana e bem maior do que era de fato.

“Fora, somos livres para falar o que quisermos; podemos até mudar o tamanho de nossa aldeia. Dentro, estamos inexoravelmente presos de alguma forma a um velho código de normas - que apesar de andar meio caduco ainda funciona”, diz Sônia em meio a um riso solto.

Daniel agora sente-se privilegiado. Pode contemplar o rosto da mulher que ama com o céu escuro atrás formando um tapete pontilhado de estrelas. A noite vista daquele lugar, longe da cidade encravada entre os morros e cafezais ficava mais bela.

“Um sobe-e-desce que não acaba. É impossível qualquer percurso em linha reta, seja em que direção for”, Sônia fala e Daniel responde afirmativamente com a cabeça, conheciam bem aquelas terras.

Vista de cima a cúpula da igreja em destaque, símbolo da influência católica ainda muito presente na vida do povo, mas agora enfraquecida. Resultado da debandada de muitos fiéis para igrejas concorrentes e também da sensação de impotência diante de novos tempos e costumes

- A vida aqui ficou mais corrida; e como em todo lugar as pessoas estão fragilizadas pelo medo da violência.

- Não acho que seja só isso. O pessoal só pensa em trabalhar, ganhar dinheiro, comprar carro novo, casa nova...há um exibicionismo irritante hoje em dia! O dinheiro pelo dinheiro, como se prosperidade fosse apenas ter dinheiro!

Para mim a prosperidade é resultado da soma de esforços, individuais ou em conjunto, vontade de fazer, inteligência, abnegação, paixão... Mas ora, as pessoas atualmente batem palmas para ladrão?! Como se roubar fosse bonito!

- Tranqüilidade absoluta não há mais, nem aqui. As casas, que antigamente ficavam de portas abertas até tarde da noite agora ficam fechadas o dia inteiro; têm grades e cercas elétricas, circuito de TV e Pit Bull no jardim”, diz Sônia em tom queixoso.

Daniel muda o tom da conversa mas não o assunto. “Essa coisa de portas e janelas abertas me lembra aquela época em que voltávamos para casa de madrugada e as fofoqueiras ficavam prestando atenção. No dia seguinte, sempre rolava de alguém chegar e contar que ouviu falar de histórias esquisitas, mas que não acreditavam e então vieram saber da gente mesmo se era verdade ou não.”

- E então desconfiávamos daquele papo “sincero’.

- Na verdade era um ‘verde’ para tentar descobrir mais alguma coisa sobre a gente.

- Negócio de fofoqueiro profissional, pode crer!

- Escutavam pela metade e depois deturpavam tudo. A dona Zelma e o “seu” Rafael eram os piores. Para eles, os caras sempre eram maconheiros e as meninas, putas. Independente de qualquer coisa! Bastava estar na rua rindo em voz alta...

- Geralmente com uma latinha de cerveja na mão.

- Lembra daquele lance do Dr. Otelo, que colocou uma vez no jornal que ia viajar para a Europa com a família e depois assaltaram a casa dele?

- Meu Deus, é mesmo...Colocou no jornal que ia ficar 30 dias fora.

- Vagabundo foi lá e fez a limpeza!

Gargalhadas entremeadas pelo tragar do cigarro e bruscamente interrompidas pelo cantar de pneus alguns metros abaixo de onde estavam.

Daniel se estica para ver o que acontece e apenas consegue ver dois homens jogarem um saco preto da ponte. O embrulho cai no riacho e afunda, depois volta a boiar e desce o curso d’água em boa velocidade, ajudado pela correnteza.

Volta-se apressado e com os dedos na boca e pede silêncio a Sônia, que ainda sussurra: “É o carro do Dr. Otelo!”

(continua)

Mais que depressa, a dupla abandona o mirante e toma o caminho em direção às bicicletas. Atrás deles a noite de lua cheia ilumina o imenso pasto disposto entre as pequenas colinas de Gaspar Lopes.

No caminho de volta pela estrada de terra, o vento frio corta o rosto na descida da ladeira de cascalho, cheia de curvas.

As bicicletas descem espalhando poeira no bambuzal que espreita, silencioso. O vento canta entre as árvores de copa farta e, àquela hora da noite, sombras de todos os tamanhos aparecem no chão, aumentando ainda mais a sensação de que algo de sinistro estava no ar.

Uma noite longa. Nenhum deles dormiu e as horas foram pesadas, misteriosas e tanto mais amedrontadoras quanto mais a imaginação insistia em criar histórias e inventar personagens daquele enredo de filme policial.

A manhã se aproxima. O barulho da passarinhada se mistura aos latidos dos cães e cantar dos galos nos quintais. A peãozada que trabalha na roça levanta cedo e espalha conversa pelas ruas de pedra ainda úmidas pelo orvalho que caiu em Gaspar Lopes.

O pequeno comércio começa a funcionar e logo de manhã corre um forte boato de que Dr. Otelo havia desaparecido.

- Mas não é possível, falei com ele ontem na barbearia!

- Fez questão de ir à missa das 7, como de costume.

- E a família?

- Os dois filhos viajaram bem cedo, estavam de camionete e abasteceram lá no posto.

- Misericórdia...

E a boataria se espalhou tão rapidamente que chegou até a igreja. O padre - muito consciencioso e temente de falar alguma inverdade, afinal, era boato, fez apenas leve menção do ocorrido no sermão.

“Pela alma daqueles que partem daqui, subitamente...”, disse com a voz trêmula, olhando de canto de olho para os parentes do pseudo-morto. Estavam muito calados e demasiado tranquilos para quem vivia uma tragédia familiar daquela magnitude, pensou o padre e metade da igreja. Àquela altura a informação praticamente já era de domínio público.

Daniel e Sônia se encontraram por volta do meio-dia, na lanchonete da praça.

- E aí, Dani, como é que fica?

- Estou com os nervos à flor da pele. Dormi mal, estou mal... Não posso ficar calada, afinal vi com meus próprios olhos! E você também, Daniel!

Olhava para o amigo com a convicção dos que têm a Verdade e a Justiça como aliados.

- Mas e se não for...

- Como assim, Daniel!? Parece minha mãe. Quando contei para ela, riu de mim, disse que estava vendo coisas...

- Você contou para sua mãe?

- Contei.

- E hoje ela foi lá em casa.

- E daí?

- Acho que ela comentou com a minha mãe, meus tios também estavam acordados. E sabe como é, né?

Os dois ainda divergiam sobre a conveniência de depor, contar tudo ao delegado, quando o Dr. Otelo passa ao lado, bem disposto, vestido de bermuda, chinelo de dedos e uma camisa velha.

- Bom dia, meninos. Estou procurando pelo Zequinha Veterinário.

Eram palavras ditas pelo homem que até pouco tempo era um defunto. Havia perdido o cão que mais gostava, Negão, um labrador enorme que morreu no dia anterior, vítima de mal ignorado.

- Estou macho com uns camaradas da fazenda, que pegaram o bicho, meteram num saco preto e desovaram no rio! Isso é coisa que se faça??

Diante daquele casalzinho sem fala, desceu a calçada a perguntar pelo tal veterinário, porque tinha medo dos outros cães contraírem também essa doença que mata. O que os olhos veem pode não ser que o coração sente, assim é que pareceu para Daniel e Sônia. E a vida em Gaspar Lopes seguiu sem pressa, ao sabor do vento e das histórias.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

A lua deitada sobre o Carlos Prates



Pela janela vejo a lua deitada sobre o Carlos Prates.

Onde jovens movidos a ansiedade e hormönios

produziram noites insones e falas aceleradas.

Saraus, loucuras pós-juvenis...

Já com 20 anos passados,

independentes e com um Belo Horizonte ao redor.

A lua deitada sobre o Carlos Prates

tem essa aura de nostalgia sem saudade

nem remorso.

Apenas memória, registro subjetivo

de acontecimentos certos e inusitados,

causa e efeito, acão e movimento a que estávamos

fadados a fazer acontecer.

Sem motivo aparente, a não ser pelo fato de estarmos vivos,

repletos de sentimentos e expectativa.

Coisas da idade.

Mover a roda enquanto o mundo girava

nos levando sei lá para onde.

O mundo deu voltas. Hoje estou a ver o Carlos Prates pela janela, quando já nem sonhava voltar.

Amores fugazes, não mais. Um só, mais ao compasso do coração.

Tantas caminhadas, tropeços, decepções, recomeços e de repente a vida torna a surpreender. Essa lua...
A lua se foi. O tempo é inexorável, nós não. Não sei se a lua é asbtrata ou concreta.

A lua é bela. Efemêra e inigualavelmente bela deitada sobre o Carlos Prates.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Há credibilidade em notícia pela internet?


Leio bastante pela internet e comparo esse hábito a passear de carro observando as placas e anúncios dessa imensa feira livre que não é ao ar livre, mas também distrai...e como! Distrai tanto que deixa escapar erros grosseiros de ortografia, concordância, sintaxe e de grafia das palavras, invariavelmente, em todas os sites que conheço. Não deixo de comparar, com certo sarcasmo, com as placas e anúncios que todo dia tentam assassinar a nossa língua.

A maioria das pessoas sabe e, obviamente que os profissionais da área principalmente– redatores, editores e inclusive os repórteres, que esse é o calcanhar de aquiles de quem vive o ritmo desse trabalho alucinante que é a busca pela notícia instantânea, em que sacrifica-se o Português, mesmo que provisoriamente. “Coloca aí e depois eu dou uma olhada”, diz o editor para o redator ou o redator para o repórter, e assim vai. Pronto, é aí que mora o perigo.

A maioria dos jornalistas também sabe que esse é um pecado profissional de relevância, desnecessário alongar o assunto, é uma lei universal das redações respeitar e obedecer as regras do idioma, seja sob que circunstância for.

Por isso é lamentável que, ao fazermos aquele passeio básico pela rede, nos deparemos com verdadeiras aberrações. Não vou descer aqui a detalhes e nem ser covarde e citar sites sem prestígio ou pouca visibilidade. Prefiro falar dos grandes, afinal, são os donos da bola.

No G1 por exemplo, dia 13 de maio de 2009, às 09:00 da manhã, fico curioso para ler a matéria especial “G1 na Jordânia”. O correspondente Daniel Buarque viajou a convite do governo e nessa matéria traça um perfil da rainha Rania, em linhas gerais, uma mulher moderna e atuante em um país de tradições milenares.

Fico com o pé atrás pelo fato do governo da Jordânia ter custeado a viagem e estadia do correspondente, acho que esse tipo de ‘oportunidade’ atrapalha também, enfim. Vou em frente, leio a matéria e ao final tenho a sensação de ter perdido meu tempo diante de um texto recheado de clichês e com erros abomináveis de forma e conteúdo.

“Rania se casou com o Rei Abdullah II em 1993, seis anos de ele assumir o trono, quando ainda não havia sido definido de que ele seria o sucessor de Hussein. Além de muito bonita e de ter esta função “publicitária”, ela de fato é inteligente e atua politicamente. Rania atua nas áreas sociais do governo, trabalhando com crianças,
jovens e mulheres.”

Não é uma pérola? O repórter atesta a inteligência da rainha, como quem diz: eu vi, estava lá e ela é, de fato, inteligente. Seria surpreendente se ele, ao contrário, dissesse que a rainha era uma tapada. Da forma como está escrito, não se sabe se o casamento com o rei foi seis anos antes ou depois dele assumir o trono. E sobre as atividades da rainha... bem, não diferem de nenhuma esposa de prefeito de uma cidade qualquer do Brasil. Não é preciso ir à Jordânia a convite do governo para comunicar isso.

Essa é apenas a ponta do iceberg. Os problemas com os textos em portais de conteúdo noticioso são inversamente proporcionais à estrutura. É assim também é com os jornais, rádio e TV – principais fontes alimentadoras dos melhores conteúdos à disposição dos leitores que também se informam pela internet e que a cada dia são mais numerosos.

Espaço cosmopolita e diversificado, a rede mundial de computadores é um mar para os aventureiros, embora também seja um refúgio para os incompreendidos de toda sorte, escrevinhadores sem editor, vídeo-makers criativos ou debilóides.e também um grande confessionário eletrônico.

Todo mundo escreve ou coloca no ar o que bem entender. Isso ora pode provocar imensa catarse coletiva – como no caso Susan Boyle; ou também grandes aborrecimentos (para ser pudico) como no caso recente de uma série de vídeos com jogadores de futebol e artistas conhecidos se masturbando em frente à webcam. Caso mal investigado pela imprensa qualificada e que alcançou muito menos repercussão do que merecia. Onde estão os abutres do azar alheio, os caçadores de escândalos? Seria o comportamento machista brasileiro? Ou despreparo para lidar com as reclamações dos figurões que apareceram em cenas deploráveis e constrangedoras?

A internet chegou para ficar, não tem como mudar isso. Mas ainda há muito a aprender sobre como lidar com essa poderosa tecnologia. Existem muitas perguntas sem resposta que deixam um imenso vácuo jurídico sobre o tema. Principalmente sobre liberdade de expressão, direitos autorais, limites entre o privado e o público e invasão de privacidade, para dar alguns exemplos. É esperar para ver e com muita cautela e manter os olhos abertos. Os distraídos são o alvo preferido dos piratas da rede.


Marco Antônio Alves
http://sites.google.com/site/rubricafilmes

quinta-feira, 9 de abril de 2009

O Tempo de Ler


Em uma tarde chuvosa de sábado, fiquei a praticar aquilo que por dever profissional ou pura curiosidade se tornou um hábito: vasculhar a internet em busca de bons textos. Não procurei por Guimarães Rosa ou Machado de Assis; nem por Camus ou Dostoiévski. Desses, prefiro os livros.

Visitei sites de escritores contemporâneos conhecidos e alguns blogs, de atalho em atalho, de link em link, eventualmente paro para ler o restante de algum título interessante. E mais uma vez me deparei com o fantasma de Paulo Francis. É nome recorrente em textos vários, principalmente depois de morto.

Francis que tão bem conhecia Literatura talvez hoje debochasse, algo bem a seu estilo, de tanta gente sofrendo de certa “ansiedade cultural”. Desse mal sofrem as pessoas que, na primeira oportunidade, fazem questão de dizer que conhecem este ou aquele autor, leram este ou aquele livro, assistiram à última produção franco-indiana, estiveram na Flip, foram ao Festival de Cinema de Tiradentes ou jamais perderam um Free Gells Music.

Nesses tempos de inúmeros lançamentos, mídias, espaços; tudo ao alcance de quem estiver disposto a pagar, quanto não sofrem os que a todo momento precisam ler um livro “essencial”, visitar uma exposição “obrigatória” ou ver um show “imperdível”?

Nenhum produto cultural, seja de que espécie for, pode ser absolutamente essencial e imperdível. Pode sim, ser muito bom, mas para evitar filas e preços salgados no caso do filme prefiro esperar o DVD e quanto ao livro (salvo algum surto dentro de uma livraria) compro depois de alguns meses, ou nem isso. Quanto às exposições, sempre freqüentei menos do que gostaria, mas também não sinto falta.

Não quero levantar a bandeira daqueles que consideram a cultura um adereço sem importância, longe disso. Mas talvez seja saudável certa dose de ignorância, no sentido de deixar de lado parte do incontrolável volume de informação que hoje nos cerca. A lógica do mercado propõe consumir cultura, e cada vez mais gente o faz avidamente.

Dizer que foi ao teatro, viu tal filme, citar nomes e obras, enfim, demonstrar-se culto muda o conceito das pessoas a nosso respeito. Eu mesmo uso desse artifício para me entrosar de vez em quando ou justificar determinado ponto de vista, principalmente no trabalho. Mas é muito desagradável ouvir chutes absurdos em determinadas rodas e muito fácil notar descrições equivocadas que denotam um conhecimento raso ou incompleto de obras e autores importantes. Melhor calar, diria o príncipe.

É quando me lembro do Paulo Francis. Outro dia li que ele costumava mentir de vez em quando, sobretudo ao comentar shows e obras de arte. Francis fazia as vezes de crítico, geralmente depois de assistir a um espetáculo no Metropolitan Opera House ou de ter lido tomos e tomos da obra de um autor com nome estranhíssimo. Da forma como escrevia, não se podia duvidar que tivesse mesmo ido à ópera ou dedicado horas à leitura dos volumes.

Em seu texto, Paulo Polzonoff Jr. diz que Francis costumava mentir a respeito dessas coisas e se divertia com isso – o que é perfeitamente compreensível em se tratando de Paulo Francis. Mas penso que mesmo tendo mentido em suas colunas, ele jamais foi desonesto com o leitor. Porque nunca negou sua verve crítica e sua lucidez ferina. Dono de um estilo elegante de escrever, tinha um jeito único de “comentar” a realidade. Nisso, sempre foi generoso.

Não me tornei uma pessoa melhor por gostar de ler, nem adquiri bens materiais e desconfio que nem mesmo fiquei mais inteligente ou menos burro depois disso. E repito a pergunta que se faz Paulo Polzonoff Jr.: por que, afinal, lemos?

Depois do tempo que passei prestando atenção nos argumentos dele para ler ou não ler naquela tarde despretensiosa de sábado, fiquei a pensar no que teria “ganhado” com os livros. Nada de propriamente misterioso, divino ou transcendental. Na verdade é bem real, mundano e individualista, por mais paradoxal que pareça: ler ajuda a entender melhor o outro.

O inferno são os outros, dizia Sartre. Mas também pode estar em nós mesmos. Além do prazer momentâneo de uma passagem engraçada, a dor de uma separação, a agonia de uma espera ou o espanto diante de um final surpreendente, o livro revela suscetibilidades, carências, desejos, sonhos, defeitos e virtudes do ser humano.

Caímos na armadilha do autor e começamos a imaginar os personagens e as situações. Nessa espécie de transe o livro passa a ser nossa única preocupação, somos reféns do desenrolar da história e cada nova linha se torna urgente, imprescindível, inadiável.
É esse o tempo de ler.

(*) Jornalista

Problema nosso

Os governos, em todos os níveis no Brasil, têm sempre projetos para tentar afastar a juventude da criminalidade. Há uma infinidade deles, em praticamente todas as grandes cidades, e os mais comuns são os que utilizam o teatro, circo, artes plásticas e outras atividades lúdicas. Os resultados são esparsos, estão longe do que poderíamos chamar de solução.

Para piorar, há as distorções, ainda mais presentes nesse meio que já é, por si, carente de qualquer tipo de recurso. Habituamo-nos a vê-los nos cruzamentos bancando os malabaristas, engolidores de fogo e, quando não há o que apresentar, apenas pedindo esmola.

Não questiono esse tipo de iniciativa, até porque o problema do menor infrator no Brasil é dramático. Não passa um dia sem que eu veja um moleque maltrapilho e descalço circulando por aí. Alguns são simpáticos, conversam, brincam, correm entre os carros. Têm os olhinhos que brilham, olhos de criança.

Não vou bancar o hipócrita, também os evito quando quero. Passo rápido e evito olhar muito para não correr o risco de sentir pena, remorso ou raiva. E quando quero dou uns trocados, troco uma idéia, dou risada com as bobagens que eles, como qualquer criança, fazem.

Prefiro vê-los durante o dia. Quando cai a noite é mais triste, se amontoam debaixo das marquises, em lugares malcheirosos. Brigam entre si por causa de um cigarro ou pedaço qualquer de comida, resto de refrigerante e outras sobras que deixamos na rua.

A pior das sensações é quando eles encontram todas as janelas dos carros fechadas. Ninguém sequer olha na direção dos meninos. Os garotos parecem não se importar muito e no próximo sinal vermelho estão de novo a cumprir aquela humilhante rotina. Enfrentam o olhar enojado dos motoristas sem perder o pique.

Têm, também, os adolescentes de rua. Esses não causam nojo, dão medo. São temidos por causa da força física e também porque, em alguns casos, estão anestesiados. Não sentem p. nenhuma por essa gente que circula apressada pelo centro da cidade. E são perigosos mesmo: matam, roubam, traficam. São a parte mais visível da violência no Brasil.

São esses rapazes, de 16, 17, 20 anos de idade os responsáveis pelo trabalho sujo. Eles é que aparecem nas páginas policiais, ora como assassinos frios, ora como cadáveres. Estão jurados de morte, são procurados pela justiça. São eles os algozes da nossa sociedade que, mais do que nunca, hoje pede "Basta!"

Quem sabe quando exterminarmos esses jovens trogloditas fedidos que nos ameaçam na saída dos bares, na porta dos bancos, na fila do cinema, estaremos finalmente livres e felizes. Será? Parece ser essa a ótica de quem prega a antecipação da maioridade penal, pena de morte e outras mudanças na lei.

Fico aqui pensando, quando essas mudanças chegarem, o que vai acontecer com os deputados ladrões, juízes que vendem sentenças, delegados corruptos, policiais bêbados e outras aberrações desse país. Estamos ameaçados mesmo por esse exército de pivetes e pivetões, mas tão ou mais indigna e detestável é a palhaçada que há séculos fazem conosco, pagadores de impostos.

Claro que há os pivetões que se tornam mega-criminosos. São os chefões do trafico, tipo Fernandinho Beira-Mar e outros menos famosos. Alguns quase viram celebridades, como foi o caso do Marcinho VP. São casos distintos, onde o melhor é agir com rigor e inteligência. Estão acima do problema da desigualdade social do Brasil, porque existem também, guardadas as proporções e peculiaridades, nas sociedades mais ricas do planeta.

O nosso problema é diferente. Somos obrigados a aturar policiais mal-preparados e mal-remunerados que trabalham no limite do estresse. Não temos serviço de saúde nem escola gratuita de qualidade razoável – salvo raríssimas (e bota raríssimas) exceções. Somos uma sociedade atrasada, que não trata o próprio esgoto e mal tem previdência social. Alguém aí está tranqüilo com a chegada da aposentadoria? Temos alguns dos piores indicadores sociais do mundo. Se alguém deve ser responsabilizado, não pode ser quem não freqüentou escola, não tem emprego e todo dia é tratado feito cachorro. Cachorro de pobre, diga-se de passagem.

Para ilustrar, uma breve historinha que saiu nos jornais:


Sobrevivente de Vigário Geral é preso por tráfico (05/05/2005)

RIO - Vítor Santos Carlos tinha apenas 9 anos quando viu a sua casa ser invadida por homens armados e encapuzados. Naquela madrugada fria, de 30 de agosto de 1993, 21 pessoas foram assassinadas em Vigário Geral. Oito delas faziam parte da família do menino que, ao lado de outras quatro crianças, foi poupado na chacina. Onze anos se passaram e o sonho de ser mecânico ficou pelo caminho. Ao longo desse período, Vítor conviveu com o medo, freqüentou divãs e chegou a servir ao Exército. De nada adiantou. Sem dinheiro, entrou para o mundo do crime e, anteontem, foi preso.

Vítor foi preso no Complexo da Maré, com 97 trouxinhas de maconha e 63 sacolés de cocaína. Na 21ª DP (Bonsucesso), onde prestou depoimento, contou ter deixado a casa da tia, na Baixa do Sapateiro, em março de 2004, para vender drogas.

- Eu estava sem dinheiro e precisava sustentar minha mulher e minha filha. Ali cheguei a ganhar R$ 100 por dia - diz.

Não quero justificar nada. Lugar de bandido é na cadeia. Mas defendo a idéia de que, antes de adotar medidas radicais de combate ao crime, é preciso pensar seriamente em um modelo mais amplo, que contemple outras necessidades e urgências intimamente ligadas à opção dos jovens pelo crime.

Não adiantam os discursos, ainda mais se feitos no Congresso Nacional. Não adiantam as passeatas, nem as faixas ou as cruzes na praia. A criminalidade, a corrupção, o mau uso do dinheiro público no Brasil precisam ser resolvidos com o aval e a participação de todos os brasileiros. Inclusive dos que comem hoje e não sabem se vão ter como se alimentar no dia seguinte.

(*) Marcos Alves é jornalista e diretor de vídeos.

Houve um tempo em que queria ter nascido americano

Houve um tempo em que queria ter nascido americano. Do norte. Ter uma daquelas jaquetas bacanas e um tênis maneiro que via na TV, entre babando e triste por querer e saber que não ia ter. Tinha minhas roupas, evidentemente, mas da maioria eu não gostava.

E ficava a imaginar-me na rua, a porta do carro aberta e eu sentado numa mesinha na calçada ouvindo um som ao lado dos amigos e das meninas que fatalmente iam aparecer. Nessa hora, acordava e tinha e pela frente uma pilha de peças de automóvel queimadas no fogo para tirarmos os fios de cobre.

Era meu primeiro emprego e nada tinha de bom nisso. Ficava o dia inteiro esperando a hora de ir embora, lá pelas 6 da tarde. Ainda dava tempo de jogar pelada no campinho de terra perto de casa.

Daí em diante é puro delírio, esquecimento, histórias que ficaram para trás, lá atrás, quando ainda existia capim gordura, pamonha, fins-de-tarde luminosos, brincadeiras no quintal, as primeiras surpresas do amor e da liberdade de poder andar por aí sem ter muito com o que se preocupar.

O ruim é que lembrei-me da jaqueta ao pensar nos vinis que perdi com a chegada da maior novidade da indústria fonográfica, o CD, muito mais barato para produzir e reproduzir. O resto ficaria igual: direitos, distribuição, vendas, etc e tal. E as gravadoras deram o maior tiro, nem diria no pé, mas talvez na própria cabeça ao toparem a idéia e hoje assistimos à luta inglória da indústria contra a pirataria. Perdeu, baby.

Lançam uma coisa e logo aparece outra, gera um monte de sucata, um amontoado de plástico e todo tipo de porcaria descartada por aí, uma sensação de fim mesmo. Mas com o vinil aconteceu o contrário. Continuam únicos e ainda disputados.

Esse breve introdutório é para dizer que estou de saco cheio de novidade. Digo isso ouvindo rádio que estou, onde rola agora uma música brasileira da melhor qualidade, dessas eternas, de Dorival Caymmi a caminho de Maracangalha, com Anália a tira-colo, que a gente sempre torce por um final feliz nessa história. Até hoje.

Ouço muito bem, nitidamente, o som que rola na FM que agora posso acessar do computador, com essas caixas de som pequenas e boas; ou do celular, menos confortável por causa do fone que acaba sempre por machucar o ouvido.

E o pessoal sempre de aparelhinho novo no ouvido, em casa, no trabalho, nas empresas. Agora, com a crise, vem a notícia de um monte de demissões, mudanças, e quando melhorar vão anunciar cursos para formar uma nova leva de funcionários por causa de uma reorganização produtiva. Ou algo parecido.

Eu tenho por hábito torcer para o Fluminense, desde a época da jaqueta americana. Sofro feito um otário até hoje pelo tricolor, estou com dor de cabeça por causa do Botafogo, mas faz tempo que deixei de querer ser americano. Do norte. Gosto de ser sul-americano mesmo, brasileiro, mineiro e acredito que as coisas aqui poderiam ser melhores se houvesse a reparação de equívocos históricos, como a falta de uma política para a educação pública que poderia e deveria ter começado ainda no império.

Mas isso à primeira vista parece tão impensável quanto na época daquela bendita jaqueta. Em 2009 os tempos são outros e mudei, mesmo que o país não tenha mudado tanto nessas últimas décadas. Mudou na casca, mas não mudou na essência.

De todo modo, estou desencantado com a Política. Vivemos em plena democracia e as eleições se tornaram praticamente um hábito para a maioria dos brasileiros. Mas depois de vários embates eleitorais e tendo, especialmente, os mais recentes como lembrança, combinemos que não há muito o que comemorar. Há sim, o que mudar, há muito para melhorar. A começar no plano pessoal.

Passamos muito tempo preocupados em aprender as pequenas complicações do mundo, como usar o caixa eletrônico, o celular, o controle remoto da TV e esquecemos de interpretar direito o olhar de um filho, deixamos de retribuir um carinho feito com amor ou simplesmente não damos ouvidos a um murmúrio que, na verdade, é um pedido de socorro expresso com muita dificuldade.

Estamos presos ao nosso tempo, e por isso mesmo, devemos aprender a transitar dentro dele. Eis a mais dura, urgente e sábia tarefa a se entregar: compreender o próprio tempo. Para assim nele agir e mudar, primeiro, o próprio destino. Assim estará dado o primeiro passo na direção de um mundo melhor.

O segundo passo deve ser na direção da construção de uma sociedade melhor. Para isso dependemos uns dos outros e precisamos pensar um mundo onde todos possam viver em condições de igualdade. Nesse momento, teria, inevitavelmente, que voltar a falar de política. E teria que fazer um imenso esforço para acreditar que ainda vale a pena acreditar, mas vivemos tempos trabalhosos. E é melhor eu cuidar da minha vida, que o carnaval acabou.

(*) Jornalista

Médico de interior


Antônio Aurélio Filho, me garante o distinto senhor atrás do balcão, é o nome completo do médico popularmente conhecido como “doutor Toninho” em Paraguaçu, cidade do interior de Minas onde nasceu e trabalhou por décadas, até morrer.

Homem de temperamento forte, chegado um copo e repito, médico dos bons, “doutor Toninho” é personagem central de casos folclóricos, geralmente envolvendo outras pessoas da cidade em situações bastante interessantes. Deixou muitas histórias, e trago na memória algumas cenas dele ao lado de minha avó, de quem cuidou até o final da vida com atenção e competência.

Na época em que o doutor Antônio trabalhou o único hospital da cidade era administrado por freiras, com mão de ferro e rígidas regras de conduta. É possível imaginar o quanto o comportamento, digamos, “rebelde” do “doutor Toninho” incomodava as irmãs. Mas ele era natural da cidade, e como médico conquistara prestígio e respeito em todas as camadas sociais.

A conversa em torno do médico se estendia, enquanto apreciávamos uma cerveja gelada na tarde quente de Paraguaçu. O “seu Tião”, dono do bar, foi quem revelou o nome inteiro do “doutor Toninho” e, indagado sobre alguma história curiosa disse que certa vez o filho dele estivera internado com suspeita de meningite.

Os exames que poderiam comprovar a doença não podiam ser feitos em Paraguaçu, cidade carente de recursos. Para isso, o filho do “seu Tião” teria que ser transferido para outra cidade. À espera de uma definição, a família não arredava pé da porta do hospital.

Tarde da noite, o “doutor Toninho” chega - visivelmente embriagado, para visitar a criança. Meia hora depois, o médico volta e tranqüiliza “seu Tião” e os demais. “O rapazinho não tem sintoma de meningite, deixa ele aqui, vamos observar.”

No olhar do “seu Tião” percebo o carinho e o respeito pelo amigo de infância que tornara-se médico. O homem continua a narrativa. Logo que o doutor Toninho vai embora do hospital, a irmã-diretora chega para o “Seu Tião” e o aconselha a transferir o menino de hospital.

Coloca em dúvida a capacidade do Doutor Toninho de fazer uma avaliação confiável, mas recebe como resposta a exigência de que a transferência deveria ser documentada. Com uma simplicidade comovente, o “Seu Tião” me explica com serenidade e clareza que reagiu daquela forma porque não faria nada sem o conhecimento de um especialista. Afinal era o filho dele.

A irmã deveria assinar um termo de responsabilidade onde constariam todas as informações sobre o quadro de saúde do garoto e a justificativa para a transferência. Somente dessa maneira, a família da criança tomaria essa decisão sem o conhecimento do médico, ou seja, do doutor Antônio Aurélio.A irmã não levou a idéia adiante. O filho do “Seu Tião” tem hoje em torno de 40 anos de idade e ótima saúde, me garante o pai.

O doutor Toninho tinha o hábito prescrever receita em guardanapos, não se furtava a responder os mais estranhos questionamentos e, dono de senso de humor apurado, raramente perdia uma piada ou deixava escapar a chance de dar respostas cretinas ou maliciosas.

Quando perguntado sobre um bom remédio para hemorróidas respondia: chifre de carneiro. Parecido com um grande parafuso bastava, dizia ele, enroscar no local dolorido tal qual uma porca. Quando chegasse no fim da rosca, era necessário puxar com força para fora. Tiro e queda, garantia.

Certa vez, uma senhora bastante tagarela e conhecida na cidade perguntou a ele se era possível engravidar sozinha, apenas por ter usado um banheiro de rodoviária. Explicou ao experiente e bêbado médico que a filha havia sentado em um vaso sanitário sujo, repleto de espertos espermatozóides que acabaram fecundando a incauta menina.

“Isso é possível doutor?”, indagou a mulher de voz estridente, em tom quase autoritário - tamanha a ansiedade diante desse dilema familiar. O doutor Antônio bebeu o copo cachaça de um gole. Vermelho feito pimentão tossiu alto, foi até a porta e pigarreou na rua. Voltou-se para a futura a avó e soltou:

“É perfeitamente possível, dona. Basta que dentro do vaso tenha um... (aqui o nome do órgão é dispensável) desse tamanho!”