terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Tempo




Ponto de partida: parte baixa da cidade, nos pés de uma colina suave. Um aglomerado de árvores e casas onde começa a estrada da lajinha. É por ela que vou começar uma corrida a fim de fazer um pouco de exercício nesses dias quentes e chuvosos de verão.

Desço correndo a rua de paralelepípedos - uma descida empinada que faz vibrar os ossos a cada pisada forte com meu tênis 40 e uma meia sem elástico. As bochechas vibram também com o impacto daquilo.

Chego enfim à esquina e viro para outra rua que desce (agora uma descida suave). Um jardim plano e imenso apresenta-se aos poucos enquanto me desloco. Á medida em que me movo, o olhar penetra em silhuetas, fendas, ocasos luminosos e aparições rápidas de seres que não posso distinguir direito agora pois quase bato em alguma coisa que surge na minha frente.

Na verdade era uma carroça, ou melhor um cavalo - pois ele puxa a carroça e portanto vem primeiro. O carroceiro era um cara gente boa e tirou um pouco o cavalo da trajetória.no momento em que busquei a parte de cima da calçada estreita e mantive o caminho até a Lajinha.

Chego então à margem do rio, um pedaço que banha a parte baixa da cidade. Há bancos e sombras em volta de mangueiras à noite procuradas por casais que ali podem namorar por horas. Uma espécie de refúgio onde também ficam andarilhos, pescadores e outros seres solitários.

Depois de 10, 15 minutos de corrida geralmente fico cansado. As pernas começam a doer e uma delas especialmente. Não lembro qual. Em algumas vezes chego a parar de correr e volto para casa. Noutras posso continuar o exercício. A dor passa. Estou agora numa estrada de terra.

O exercício se torna mais árduo com a poeira dos carros. Incomoda quando passam com as pessoas olhando para a gente. Devem pensar: que faz este aí correndo? As moças olham e depois se viram sorrindo. É bom. Os mais velhos ficam de cara fechada. Pode ser a poeira no rosto. Era um fusca antigo e empoeirado lotado de gente. Para andar ali é ótimo.

Os pulmões agora estão contra minha vontade de continuar a tarefa até o final. O ar é pouco e o sol está forte. Completamente molhado de suor forço a barra e continuo marchando sobre a terra dura. Bois, bezerros, bichos com chifres e sem chifres, grandes, médios e pequenos comem o pasto.

Um cheiro de estrume fresco fica no ar quente do verão dessa roça. E eu ali correndo. Diminuo então o ritmo, estou a cem metros do rebanho espalhado entre morros de cupins, numerosos nessa região e que se misturam aos vales e planícies do lugar. Passo devagar entre esses animais que tem o estranho hábito de ficar mascando grama e olhando fixamente para a gente.

Escuto o marulhar da água lá embaixo. São uns oitocentos metros até o final. Há uma ponte depois de uma curva à esquerda. É a ponte onde antigamente se fazia o caminho até a Varginha. Depois da estrada nova ficou conhecida como Ponte Velha. O nome é apropriado.

Não tem as proteções laterais em alguns pontos. Dizem que por ali passaram automóveis e caminhões que despencaram rio abaixo. O vento que sopra entre as árvores e chega em rajadas- o que também colabora para tornar tudo ainda mais bucólico.

O rio passa caudaloso embaixo lambendo as pedras eternas de seu leito. Acompanho com o olhar o rio até sumir no horizonte alaranjado e o ponto onde preciso desviar-me do reflexo dos raios do sol na água.

Fim de corrida, ando em passos lentos. Satisfeito com a viagem busco a sombra. Sentado na grama, descalço, procuro quase não pensar. Apenas tenho a sensação de que vivi mais em 20 minutos que alguns dias, talvez meses da minha vida.

Não apenas pelo exercício e seus benefícios. Mas pela idéia de que o tempo às vezes parece voar como tico-ticos, às vezes parar como a Lajinha. E nós não temos o menor controle sobre isso. Tanto tempo falta e tanto tempo sobra...E a vida aí para ser vivida - 2010 que o diga.

sábado, 12 de dezembro de 2009

A arte imita a história



Um tanto entediado pelo noticiário farto e cansativo, vasculho a internet – não em busca de novidades, mas para bisbilhotar a vida de personagens históricos. Escolho Tiradentes, talvez o nome mais facilmente lembrado entre as figuras brasileiras, praticamente um herói nacional.

Joaquim José da Silva Xavier, figura que qualquer pessoa no Brasil que possa ler este Literário conhece, viveu em Vila Rica, hoje Ouro Preto, e inspira conversas que ficam ainda mais saborosas nas subidas e descidas da bela cidade mineira.

Em Ouro preto conspira-se o tempo todo. É algo que está nas ladeiras, nos telhados, na expressão de alguns anjos barrocos, nos malandros das esquinas, no olhar das mulheres, nos agitos noturnos das repúblicas, nos bares, em todo canto.

Basta dar asas à imaginação, puxar um pouco pela memória e começar a olhar em volta. O lugar onde a cabeça de Tiradentes ficou exposta por mais de dois anos por conspirar contra o império português está lá, agora, como monumento ao mártir. Em volta, tudo permanece: o casario, as igrejas, as pedras das ruas.

E um mistério ainda paira pelas ladeiras, por mais de dois séculos: onde foi parar a cabeça de Tiradentes? Dizem alguns que está na casa de Bernardo Guimarães, poeta e contista fascinado por Ouro Preto, onde nasceu, viveu e morreu no século XIX. É dele o conto “A cabeça de Tiradentes”, que como poucos escritos, descreve, esplendidamente o modo de vida na cidade durante o período em que foi capital da província de Minas Gerais.

Tempos de fartura, época em que o ouro era abundante e mexia com a vida de todos. Tanto que era comum as negras se enfeitarem para os festejos dando brilho aos cabelos com a poeira dourada que sobrava das lavras. “...e edificaram mais de um templo magnífico com as migalhas de seus senhores.’ A leitura de Guimarães – o Bernardo e não o João, é uma breve e divertida aula.

A abundância em Ouro Preto agora é coisa do passado. O centro histórico está bem conservado, mas a cidade cresce de forma desordenada na periferia – como quase todo município de porte médio do interior do Brasil. Dos tempos de capital da província e berço da Inconfidência, Ouro Preto ainda cultiva o gosto pela cultura e a pluralidade de pensamento.

Museu e cenário a céu aberto, Ouro Preto foi palco da encenação em praça pública do martírio de Tiradentes, coisa de alguns anos atrás – a data não sei ao certo, mas o que segue aconteceu de fato e quem quiser e puder que ajude nos comentários.

Bem, a tal peça foi encenada em comemoração ao dia da Inconfidência, 21 de abril, e o roteiro foi fiel à história. Depois do enforcamento no Rio de Janeiro as partes do corpo do alferes foram mandadas para várias partes da colônia. A cabeça veio para Ouro Preto. A réplica usada pelos atores também foi colocada no mesmo lugar onde, em 1792, estava a cabeça enfiada em uma estaca, método usado para intimidar quem ousasse conspirar contra a coroa portuguesa.

Conta Bernardo Guimarães que a cabeça ali ficou por 2 ou 3 anos. À medida que o tempo passava, diminuía o interesse e a perplexidade por aquele símbolo da mão forte da coroa sobre a colônia. Em uma noite em que só estava a caveira solitária a se debater com o vento, enquanto o sentinela dormia, eis que um gaiato a rouba e o guarda só tem tempo de ver o vulto sumir na esquina da rua das cabeças – situada logo acima da praça.

Sim, rua das cabeças, como mais uma vez ensina o conto: “...a origem desse nome sinistro vem de que aí se fincavam na ponta de estacas as cabeças dos míseros enforcados pelas esquinas dos becos”. No alto da rua, diz-se que viveu um velho de vida reclusa e que, especula-se até hoje, seria o ladrão da cabeça verdadeira. Ao contrário das vizinhas, a casa onde viveu não ficou de pé para ajudar a contar a história.

Na peça, a cabeça feita de gesso também foi erguida na praça e ficou dia e noite sob a guarda de um sentinela. Não era ator, mas policial ou funcionário da prefeitura – não me lembro bem, mas isso não tem importância.

Ocorre que em um momento de descuido ou esquecimento mesmo, ninguém viu a cabeça sumir de novo! O caso gerou mal-estar, foram feitas investigações e buscas até a polícia encontrar um suspeito. No depoimento, o homem disse que não poderia mudar a história.

Como o personagem de Bernardo Guimarães, sabia onde estava a cabeça do mártir, mas não poderia dizer. E o caso foi encerrado sem que a cabeça falsa aparecesse. Assim como a verdadeira nunca apareceu.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Sobre chatos e vizinhos



Nos encontramos na esquina. Eu, a caminho do supermercado; ela, de volta. Ao passar por mim, a pequena senhora – com menos de metro e sessenta de altura e mais de 80 anos de idade, disse de novo: “A boca não pára, toda hora tem que comprar um trem!” O sotaque mineiro destacado na última sílaba.

Trem, que na verdade quer dizer outra coisa, quer dizer comida, basicamente. Víveres. “A boca não pára...”, completa ao passar por mim. Não consigo segurar o riso, o comentário da vizinha quebra o gelo da manhã sem graça. É como se dissesse: “É preciso fazer alguma coisa, precisamos sobreviver nesse mundo”.

Personagens de bairro, figuras que a gente vai se acostumando, pois sempre as encontramos naquela hora besta, quando estamos de calção e chinelo a caminho da padaria. Gente a quem não devemos satisfação alguma, mas que se dão ao trabalho de perguntar-nos: “Como vai?”

Mesmo mergulhados no mais absoluto mau-humor, esse tipo de comentário gratuito acaba por nos deixar mais leves, menos sisudos. Justamente no momento em que gostaríamos de passar incólumes, sem dar papo a ninguém.

Não podemos dizer o mesmo de outras situações e ambientes, como no trabalho, em casa ou na escola dos filhos. Nesses locais, nunca passamos despercebidos, e, no entanto, há dias em que faríamos de tudo para não sermos notados.

Existem vários motivos para essa reclusão voluntária. A chatice é um deles, em todas as suas nuances e variações de intensidade. Há os chatos que se aproximam da gente por interesse, por exemplo, gente que acha que pode ser dar bem a todo instante, como se isso fosse possível.

Esses geralmente estão no ambiente de trabalho. Acham que qualquer situação é oportuna para “ganhar uns pontinhos”, mostrar serviço, “assinar” determinada atitude, frase, ação, ou algo que lhe renda um “Puxa, que bom”, dito por alguém hierarquicamente superior. São os famosos e onipresentes puxa-sacos.

Tem gente que é chata mesmo, já nasce assim. Esse tipo de chato costuma ser da família ou é amigo, algum amigo próximo, e a gente praticamente é obrigado a conviver com eles. São “de casa”, não se incomodam de levar um corte, e mesmo ignorados permanecem onde sempre estiveram, por total falta de mobilidade social. Malas, enfim.

Finalmente chegamos aos chatos da escola dos filhos. Poderia ser aquele recreador mais animadinho ou a professora feia com ar de rigorosa – mas geralmente são os pais dos outros alunos. E o momento máximo da chatice na escola dos filhos acontece em ocasiões especiais, como o Dia dos Pais. Tudo bem, é legal estar ali com os pimpolhos e tudo, mas sempre tem aquele mico...

Não, não é o mico o chato em questão, nem a brincadeira em que você coloca um saco na cabeça e esbarra em todo mundo antes de encontrar o garoto. Essa até que é divertida. Duro mesmo é ter que conversar com gente que você não conhece (geralmente pessoas bastante diferentes de você), sobre assuntos que não lhe interessam (normalmente carro, futebol ou religião) , em um dia em que você poderia estar fazendo outra coisa, como um churrasco, por exemplo.

Mas a vida é assim, e temos que cumprir a agenda. Afinal, como diz a senhorinha que cruza comigo (ops) quase todo dia na esquina, “a fila tem que andar”. Nas palavras dela: “A boca não pára e toda hora tem um trem para comprar”.