domingo, 6 de março de 2011

Fantasia e realidade




Em busca do texto perfeito, ele insiste em dedilhar o teclado. Sabendo de antemão que ao final das frases restará uma sensação desagradável. Quase sempre fica insatisfeito. Nada além de uma idéia não terminada ou mal escrita. Quer uma boa história, com picardia, humor, paixão. "Mas um ser tão impregnado das `coisas`, desse nosso tempo jamais pode escrever algo assim", auto-censurou-se. "Preciso me libertar da concepção adquirida no trabalho acerca do ofício de escrever. Livrar-me dos desejos, crenças e formalidades arraigadas em minha personalidade. Mas me falta coragem, aproach (estou contaminado por um certo colonialismo cultural e suspeito ser essa uma das causas do meu fracasso como pensador). Resisto à idéia de desistir. Mas estou ficando desesperançado, pois a cada dia recomeço as frases e logo sou levado a interromper."

Enquanto ele se queixava, ela abriu a porta do quarto e perguntou. – Vamos? Sem disfarçar o aborrecimento ele desvia o olhar para o chão, exprimindo cansaço.

– Ainda não terminei.
-Nem vai terminar, querido, porque são oito e meia e a festa é às nove. Sabe como Alice é pontual e nota quando alguém se atrasa nas festas de aniversário das filhas. Ainda mais sendo aniversário da Júlia, vc sabe...

Ela continuou a falar , enquanto ele permaneceu imerso em pensamentos sobre a dificuldade de conciliar a mente etérea e fluida com os compromissos terrenos.

No chuveiro, ele pegou o sabonete e começou a se esfregar vagarosamente. O artigo era para segunda feira. Teria ainda o domingo para terminar. Quem sabe amanhã teria uma boa idéia, aproveitaria uma notícia de jornal, acharia um gancho para o texto.

- Onde estão as meias limpas?
- Não sei, acho que no armário, na terceira gaveta.

Vestiu a roupa, ajeitou o cabelo, a mulher já pronta, as crianças no carro. Foram para a festa de aniversário.

Barulho de apitos, Karaokê, piscina de bolinhas, a mesa decorada com figuras de uma conhecida heroína infantil. "Bacana, de qualquer forma é bom se distrair um pouco", pensou. De ruim, apenas as conversas inevitáveis com cunhados, amigos dos cunhados, carros, futebol, e piadinhas de mau gosto sobre mulheres, pretos e viados. O de sempre. No meio do salão, uma bela jovem se incumbia de brincar com a criançada. De vez em quando pegavam um adulto para cristo e o colocavam no meio da roda. Ele procurou um lugar de difícil acesso, a cadeira mais escondida da última mesa, perto da cortina. Ali estaria seguro.

Mas cismaram com ele. Foram até lá e o trouxeram pela mão, todo sem jeito, para a brincadeira. Teve que dançar um bolero com a mãe da aniversariante, e até que não foi tão ruim. Lembrou-se de Nelson Rodrigues, dos desejos inconfessáveis que surgem nas horas mais impróprias. Aquele corpo... estava com as mãos nas costas mais lindas que já tinha tocado. Agora a ocasião permitia. Dançaram até o fim da música, e ele teve a sensação de que ela demorou-se um pouco a desfazer a posição em que ficaram por longos e gostosos minutos. Não foi tão ruim, pelo contrário e ele voltou a se sentar com o humor refeito. Bebeu um gole de cerveja, comentou com a sogra que há tempos não dançava, e que estava feliz com a performance.

De repente, lá fora, um carro da polícia chama a atenção dos convidados. Uma criança morreu durante uma troca de tiros entre bandidos, e a polícia veio avisar a mãe. A mulher, de cinqüenta e poucos anos, saiu arrasada. Trabalhava como doméstica na casa de uma convidada e estava ajudando na festa. Segundo a Polícia Militar, Bruna de Castro Souza, de 12 anos, foi baleada na cabeça e no pescoço. A garota ainda foi socorrida, mas já chegou morta ao hospital. Muito abalada, a família disse que a menina tinha saído de casa para comprar um doce, e acabou sendo ferida no tiroteio. De acordo com a PM, a menina tentou fugir de uma briga de gangues que disputam o tráfico de drogas no local.

Ele perdeu o humor, mas conseguiu o tema para o artigo. Não, não precisaria mais do texto perfeito, esse podia esperar. Iria falar agora de algo mais urgente. O clima de guerra civil num país desigual e corrupto. O trivial do jornalismo. O tipo de assunto que vende e desperta comoção. Outro dia, talvez, iria se sentar para escrever o texto almejado. Quando pudesse falar do quanto desejou àquela mulher com quem dançou o bolero. Quando pudesse sentir a verdade saindo da alma e não tivesse vergonha ou medo. Quando fosse humano o suficiente para errar e deixar pistas. Quando deixasse de lado a dissimulação e os artifícios baratos para satisfazer a família, a empresa, os amigos. Quando estivesse com o coração limpo, mesmo correndo riscos. Como a menina que morreu a caminho do bar, onde iria comprar um doce.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Linhas cruzadas



Celso discute em altos brados com a mulher, Laura. Ela duvida da fidelidade do marido e suas suspeitas aumentaram depois da última noite, quando ele chegou tarde, “com a roupa cheirando a cigarro e perfume barato”, as últimas palavras dela antes do telefone tocar. Celso atende.
- Alô?
- Celso?
- Ele!
- É Oscar, gerente do banco.

Celso faz uma careta, costuma fazer expressão de dor nessas ocasiões, coisa que sempre diverte Laura, mas dessa vez ela não moveu um músculo sequer do rosto. Ele começa a conversa: “Oi, tudo bem?” Mas logo diz “um minuto só” e larga o telefone para atender ao celular, que também toca.
- Alô.
- Celso, é Mauro. E aí, cara deu merda?

Ele larga o telefone assim que escuta outra insinuação da mulher.
- Eu sei muito bem o que você foi fazer lá...Você e aquele seu amigo que nem gosto de falar o nome...
- Mauro...
- Esse mesmo. Cadê ele? Por que você acompanha esse tipo de pessoa? Esse babaca é um irresponsável, Celso, é por isso que a Telma está quase separada dele!

Celso esquece os telefones, celular e fixo, senta no sofá, passa as mãos pela cabeça, respira fundo e começa a falar calmamente, em voz baixa e tom ameno.
- Eu já disse a você que não, não aconteceu nenhuma sacanagem nessa maldita festa. Eu não sei como a Telma e o Mauro estão, não os vi ontem e repito: só passei lá porque o pessoal insistiu muito, e queria ver a tia Lourdes, estava com saudades e ela ficaria sentida se eu não fosse. Aliás, nunca mais falei com o Mauro depois daquele dia em que estávamos todos lá, na casa dela. Quando foi mesmo?
- Olha, não vem com esse papo, essa conversinha mole que eu não vou cair não, tá? E tem mais, estou sabendo que a Mônica e a Marluce estavam na tal festinha de ontem. A Telma já tinha me alertado sobre essas piranhas!
- Você está completamente doida!

Celso praticamente ignora a última acusação e, com uma distinção britânica, pega o telefone celular de volta.
- Pode falar Oscar, o que você quer?
- É o Mauro, cara.

Ele se encolhe e tapa a boca com uma das mãos ao falar baixinho, mas com energia:
- Nossa! Dá um tempo aí, pô! Mas não desliga não, já falo contigo.

Joga o celular no sofá e pega o fixo.
- Alô, João Paulo, pode falar.
- Não é João Paulo, é Oscar.
Ah...desculpe, Oscar.

E se fazendo de esquecido, pergunta:
- Sobre o que falávamos?
- Sua conta está estourada.

A mulher solta outro impropério, lá do banheiro, tão alto que até o gerente do banco e o Mauro ouviram. Celso esquece os telefones e vai até o meio da sala.
- Por que não diz logo quem foi que me envenenou com você, Laura?
- Ninguém me disse não. Dá para ver na sua cara!

Celso sabia que ela falava assim para jogar um verde, desequilibrá-lo, arrancar uma confissão ou quase isso. Lembrava de quando chegou tarde do futebol por causa de uma esticadinha no churrasco da república das meninas e de tanto ela dizer que estava “na cara que ele tinha aprontado” acabou dizendo que sim, que tinha ido a um churrasco e tinha mulher lá, mas não se engraçou com ninguém porque era casado, amava a família e tal e essas coisas. Na verdade, nesse dia ficou tão bêbado que depois de certo tempo mal conseguia conversar na festa. “Dessa vez não serei tão ingênuo”, pensou.

Celso pega o telefone celular. Na verdade, começa a ficar meio atordoado.
- Ainda bem que você não desligou. Minha mulher está muito, muito desconfiada. Mas eu não posso cair...a coisa já não está boa, devendo no banco e tudo. Como é que eu vou para um hotel ou coisa parecida? Vou morrer na sarjeta!

A ligação é ruim. Ele nem ouve quem está do outro lado e fala sem parar.
- Quer dizer... não aconteceu quase nada, ficamos conversando, dei uma alisadinha nas coxas dela. Rapaz, que espetáculo! Mas não passou disso, sabe? Bem, depois que você saiu o bicho pegou, mas não tinha mais ninguém lá. Só eu, o Marcos e as garotas, certo? Olha, vou desligar. Minha mulher pode aparecer a qualquer momento.

Desliga e pega o telefone fixo.
- Oscar! Vou ver o que consigo para cobrir isso aí.
- Celso, acho melhor eu ligar em outra hora. Melhor, liga você para mim. Bateram alguns cheques na sua conta e o limite do especial estourou, é preciso cobrir. Mas pelo jeito, você tem algo mais urgente pra resolver.

Telma, que tinha pego o celular do Mauro por acaso e ouviu a história toda, a essa altura discava para o celular de Laura.

(*) Jornalista