sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O pai dos pobres

* Por Marcos Alves


 


Era um cara popular. “Homem de carisma!” – garantiam os mais próximos. Apresentador de TV, fazia sucesso prometendo resolver os problemas dos humildes, dos sem chance, dos sem casa, dos sem amor, sem esperança, sem nada.

Atuava no varejo. Pinçava um desgraçado qualquer e o colocava diante das câmeras a implorar por ajuda, depois de destilar seu rosário de miséria, não ocasionalmente seguido de um choro incontido – "melhor para os números!", grita o diretor pelo ponto eletrônico. Quando a “vítima” chora no ar, aí é o momento de emendar um fundo musical adequado, bem triste para e-mo-cio-nar.

Se o convidado ou convidada começa a rir de nervoso, então... ele emendava: “É sem-vergonha!” – e o sonoplasta emenda outra música, agora com letra de duplo sentido, cheia de sacanagem, escárnio e palavrões.

Gargalhadas no estúdio. A claque vai ao delírio, grita ao som da música ruim, é o público cativo formado pelos técnicos da emissora e amigos, além de parentes dos convidados do programa. De repente,  o apresentador muda de câmera./ De frente pra lente em close ele pede silêncio. Vira-se para o convidado, e agora em tom sério e com o semblante preocupado pede a ele que conte sua história, relate o problema que o levou a procurar ajuda.

O miserável diz que está desempregado e a noiva espera uma criança para o mês que vem. Quer uma máquina de pipoca, um carrinho para trabalhar de ambulante. O apresentador ainda pergunta outras coisas antes de tecer um comentário sobre a situação difícil desse “brasileiro sofrido”. Chama a atenção das autoridades, diz que isso não é possível, muda de câmera de novo e garante: vai resolver o problema do rapaz.

Termina o programa, o apresentador sai do estúdio sorridente. Com ar cansado diz que precisa ir embora rápido, tem compromissos importantes. Não vê a fila de gente esperando no corredor, cada qual com seu drama pessoal, sua batalha, sua luta. O homem sai do prédio, entra na garagem, vai até o carro que arranca levantando uma nuvem de poeira. Também não vê outra fila, ainda maior, de toda sorte de renegados: viciados em crack, em pinga, em cola, em cocaína, pessoas sem senso de espaço nem tempo. Um mar de gente aglomerada em meio à sujeira na calçada do centro da cidade.

A audiência do programa crescera geometricamente nos últimos 3 meses e o camarada faturava alto. Graças a um público fiel se tornou o “Pai dos pobres”, diziam os fãs na fila interminável. “Vai atender a todos nós”, acreditavam.

“Será ?”, soprou uma voz fraca, no meio daquela gente toda. “Vai sim, ele disse que vai!”, respondeu uma defensora do homem, procurando saber de onde surgiu a dúvida. Veio de uma senhora sentada em uma cadeira de rodas, os braços finos, fracos, o rosto cansado e a alma desconfiada de tanta benevolência.

A necessidade de ter uma nova cadeira falou mais alto e lá estava ela, na fila. Era a terceira vez que vinha, em 2 meses, e ainda não tinha conseguido vaga na “Tribuna do Povo” – espécie de púlpito colocado no estúdio onde as pessoas falavam de seus problemas e faziam os pedidos.

Alguns meses passaram e a fila ficava cada vez maior. “Viu só aquilo?”, disse um produtor do programa. “Onde vai parar isso?”. “No topo, amigo. Só vai parar quando chegarmos ao topo”. A resposta foi dada pelo próprio apresentador, que entrou na redação depois de passar pelos pedintes protegido pelo vidro escuro do carro.

Só que a situação preocupa. A fila na porta já não se restringe ao quarteirão da emissora. Não é mais como era nos outros dias. O atendimento passou a ficar demorado. Há tantos pedidos, tamanha demanda que jamais será atendida – nem se o programa ficar mais 10 anos no ar. E como comunicar isso àquela multidão?

O apresentador tem uma idéia. “Vamos amenizar o discurso, diminuir as doações. Depois a gente pensa em um novo ‘gancho’ para o programa, mas sem tanto assistencialismo, que esse negócio anda ficando muito caro. O empresário doa, mas depois exige muito em troca e onde é que fica o meu? Cadê o meu?!”, falou, aos berros, como de costume.

Depois, continuou. “Saúde e emprego são problemas do governo. Se eles não dão jeito, a gente é que vai dar?” Vira-se para a assistente de produção e ordena: “Paula, vai lá fora e avisa que as inscrições foram suspensas por tempo indeterminado”.

A moça chega até o portão, mas nem consegue abrir a boca. As pessoas se jogam aos pés dela, mostram feridas, braços engessados, muletas, fotografias de pessoas convalescendo em leitos de hospitais, cartas mal-escritas, sujas e amarrotadas. Prestes a receber o diploma de jornalista, nunca esteve tão perto do desespero do povo brasileiro.

Paula não consegue cumprir a ordem e leva um esporro do apresentador. “Eu mesmo vou lá, não mando recado. Deixa comigo”, e saiu em direção ao portão da empresa. “Minha gente!” Não teve tempo de dizer a segunda frase, foi agarrado, puxado pela gravata, caiu no meio da rua. Ele também nunca havia sentido o cheiro do povo tão de perto.

Perdeu os óculos na queda, e teve uma visão embaçada das cartas, dos rostos, das mãos. Levantou-se, ajeitou os cabelos, a gravata, tirou o pó e levantou uma das mãos. Queria terminar logo aquilo. “A partir de segunda-feira, vocês não precisam mais vir aqui. Basta telefonar ou mandar um e-mail, peçam para seus filhos, sobrinhos, amigos... E dentro do possível, iremos atender a....”

De novo, não teve tempo de terminar a frase. Foi uma confusão total. Antes fiéis admiradores, as pessoas agora ficaram hostis, agressivas. O apresentador ao perceber que seus argumentos só aumentavam a ira daquela gente toda ergueu as mãos para a guarita, pediu ajuda dos seguranças. Mas todos estavam ocupados em proteger o patrimônio da empresa, no caso, os vidros da fachada ameaçados por paus e pedras nas mãos dos revoltosos.
Nada foi suficiente para convencer aquela gente a desistir. Os vidros foram quebrados, a sala de espera destruída. Um cenário de guerra: poltronas rasgadas, terminais de computador jogados no chão, pedaços de madeira, plástico e materiais usados em cenários, tudo espalhado, pisoteado, inutilizado.

“Essa gente não tem educação mesmo”. A boca costurada dificulta a pronúncia e a compreensão, mas os filhos e a mulher do apresentador entenderam a frase. Nem na cama do hospital, ele alterou o estilo.