segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Necessidade




A arte é necessária,
como o carinho,
o adorno, o afago.

Tanto quanto o abraço,
o esforço, o esmero,
que não são arte,
mas condição para ser humano.

O suporte,o estofo,
o motor da história,
mas não arte.

Arte é um sopro,
Um toque, um espasmo, um grito.
O átomo e a montanha,
o homem e a natureza.

A paz é arte,
assim como o fogo.
Há quem diga
que há guerra
no estado da arte.

Arte, para mim, é o olhar de minha avó.
Parecido com outros que vi,
por aí, mas nunca iguais,
ao olhar sereno e forte
de Dona Adozinda.

O deleite dos sentidos:
Miró, Rosa, Goethe, Rimbaud.
Da Vinci, Proust,
Tom Jobim, Led Zeppelin,
Buñuel e... quem mais?

Se não fosse pela arte
Tudo seria insuportavelmente prático.
E a vida reduzida a pequenas escolhas.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O pai dos pobres




Era um cara popular. “Homem de carisma!” – garantiam os mais próximos. Apresentador de TV, fazia sucesso prometendo resolver os problemas dos humildes, dos “sem oportunidade, dos sem casa, sem-amor, sem-salário, sem-esperança”.

Atuava no varejo. Pinçava um desgraçado qualquer e o colocava diante das câmeras a implorar por ajuda, depois de destilar seu rosário de miséria, não ocasionalmente seguido de um choro incontido – tanto melhor para os números! Quando a “vítima” chora, aí é o momento de emendar um begezinho adequado, uma música bem triste para e-mo-cio-nar.

Se o convidado, ou convidada, começava a rir, reação natural pelo nervosismo de estar na TV, ao vivo, ele emendava: “É sem-vergonha!” – e o sonoplasta emenda outra música, agora com letra de duplo sentido, cheia de escárnio e palavrões.

Gargalhadas no estúdio – a claque era formada pelos técnicos, curiosos e amigos e parentes de convidados. Depois o apresentador muda de câmera e, em close (imagem fechada no rosto, quase um 3x4), pede silêncio. Vira-se para o convidado, agora em tom sério e com o semblante preocupado e pede para que ele relate o problema que o leva a procurar ajuda.

O miserável diz que está desempregado, a noiva espera uma criança para o mês que vem. Quer uma máquina de pipoca, um carrinho para trabalhar de ambulante. O apresentador ainda pergunta outras coisas antes de tecer um comentário fascista sobre a situação difícil desse “brasileiro sofrido”. Chama a atenção das autoridades, diz que isso não é possível, muda de câmera de novo e garante: vai resolver o problema do rapaz.

Termina o programa, o apresentador sai do estúdio sorridente. Com ar cansado diz que precisa ir embora rápido, tem compromissos importantes. Não vê a fila de gente esperando no corredor de entrada da emissora. Entra no carro, levanta uma nuvem de poeira antes de deixar o estacionamento e também não vê a outra fila, ainda maior, do pessoal que nem conseguiu entrar.

A audiência crescera geometricamente e o camarada faturava alto. Ele chegou dirigindo um carro velho, agora estava de camionete importada. Trocara também de apartamento, e “até de mulher” gostava de frisar. Vivia agora uma doce rotina de viagens, e despesas caras com roupas, restaurantes e hotéis.

Graças a um público fiel, sempre disposto a passar por uma ´humilhaçãozinha” para conseguir uma ajuda, se tornou o “Pai dos pobres”, diziam os fãs, alguns ali na fila interminável. “Vai atender a todos nós”, acreditavam.

“Será ?”, soprou uma voz fraca, no meio daquela gente toda. “Vai sim, ele disse que vai!”, respondeu uma defensora do homem, procurando saber de onde surgiu a dúvida. Veio de uma senhora sentada em uma cadeira de rodas, os braços finos, fracos, o rosto cansado e a alma desconfiada de tanta benevolência.

A necessidade de ter uma nova cadeira falou mais alto e lá estava ela, na fila. Era a terceira vez que vinha, em 2 meses, e ainda não tinha conseguido vaga na “Tribuna do Povo” – espécie de púlpito colocado no estúdio onde as pessoas falavam de seus problemas e faziam os pedidos.

Alguns meses passaram e a fila ficava cada vez maior. “Viu só aquilo?”, disse um produtor do programa. “Onde vai parar isso?”. “No topo, amigo. Só vai parar quando chegarmos ao topo”. A resposta foi dada pelo próprio apresentador, que entrou na redação depois de passar pelos pedintes protegido pelos vidros escuros do carro.

Mas a situação preocupava. A fila na porta da emissora não estava como nos outros dias. O atendimento era demorado e a maioria não ia ser atendida – nem se o programa ainda ficasse 10 anos no ar. Mas como comunicar isso àquela multidão?

O apresentador tem uma idéia. “Vamos amenizar o discurso, diminuir as doações. Depois a gente pensa em um novo ‘gancho’ para o programa, mas sem tanto assistencialismo, que esse negócio anda ficando muito caro. O empresário doa, mas depois exige merchandising e onde é que fica o meu? Cadê o meu?!”, falou, aos berros, como de costume.

Depois, continuou. “Saúde e emprego são problemas do governo. Se eles não dão jeito, a gente é que vai dar?” Vira-se para a assistente de produção e ordena: “Paula, vai lá fora e avisa que as inscrições foram suspensas por tempo indeterminado”.

A moça chega até o portão, mas nem consegue abrir a boca. As pessoas se jogam aos pés dela, mostram feridas, braços engessados, muletas, fotografias de pessoas convalescendo em leitos de hospitais, cartas mal-escritas, sujas e amarrotadas. Prestes a receber o diploma de jornalista, nunca esteve tão perto do desespero do povo brasileiro.

Paula não consegue cumprir a ordem e leva um esporro do apresentador. “Eu mesmo vou lá, não mando recado. Deixa comigo”, e saiu em direção ao portão da empresa. “Minha gente!” Não teve tempo de dizer a segunda frase, foi agarrado, puxado pela gravata, caiu no meio da rua. Ele também nunca havia sentido o cheiro do povo tão de perto.

Perdeu os óculos na queda, e teve uma visão embaçada das cartas, dos rostos, das mãos. Levantou-se, ajeitou os cabelos, a gravata, tirou o pó e levantou uma das mãos. Queria terminar logo aquilo. “A partir de segunda-feira, vocês não precisam mais vir aqui. Basta telefonar ou mandar um e-mail, peçam para seus filhos, sobrinhos, amigos... E dentro do possível, iremos atender a....”

De novo, não teve tempo de terminar a frase. Foi uma confusão total. Antes fiéis admiradores, as pessoas agora ficaram hostis, agressivas. O apresentador ao perceber que seus argumentos só aumentavam a ira daquela gente toda ergueu as mãos para a guarita, pediu ajuda dos seguranças. Mas todos estavam ocupados em proteger o patrimônio da empresa, no caso, os vidros da fachada ameaçados por paus e pedras nas mãos dos revoltosos.

Nada foi suficiente para convencer aquela gente a desistir. Os vidros foram quebrados, a sala de espera destruída. Um cenário de guerra: poltronas rasgadas, terminais de computador jogados no chão, pedaços de madeira, plástico e materiais usados em cenários, tudo espalhado, pisoteado, inutilizado.

“Essa gente não tem educação mesmo”. A boca costurada dificulta a pronúncia e a compreensão, mas os filhos e a mulher do apresentador entenderam a frase. Nem na cama do hospital, ele alterou o estilo.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Médico de interior





Antônio Aurélio Filho, me garante o distinto senhor atrás do balcão, é o nome completo do médico popularmente conhecido como “doutor Toninho” em Paraguaçu, cidade do interior de Minas onde nasceu e trabalhou por décadas, até morrer.

Homem de temperamento forte, chegado a um copo e repito, médico dos bons, “doutor Toninho” é personagem central de casos folclóricos, geralmente envolvendo outras pessoas da cidade em situações bastante interessantes. Deixou muitas histórias, e trago na memória algumas cenas dele ao lado de minha avó, de quem cuidou até o final da vida com atenção e competência.

Na época em que o doutor Antônio trabalhou, o único hospital da cidade era administrado por freiras, com mão de ferro e rígidas regras de conduta. É possível imaginar quanto o comportamento, digamos, “rebelde” do “doutor Toninho” incomodava as irmãs. Mas ele era natural da cidade e como médico conquistara prestígio e respeito em todas as camadas sociais.

A conversa em torno do "Doutor Toninho"" se estendia, enquanto apreciávamos uma cerveja gelada na tarde quente de Paraguaçu. O “seu Tião”, dono do bar, foi quem revelou o nome inteiro do nosso personagem e, indagado sobre alguma história curiosa disse que certa vez o filho dele estivera internado com suspeita de meningite.

Os exames que poderiam comprovar a doença não podiam ser feitos em Paraguaçu, cidade carente de recursos. Para isso, o filho do “seu Tião” teria que ser transferido para outra cidade. À espera de uma definição, a família não arredava pé da porta do hospital.

Tarde da noite, o “doutor Toninho” chega - visivelmente embriagado, para visitar a criança. Meia hora depois, o médico volta e tranqüiliza “seu Tião” e os demais. “O rapazinho não tem meningite, deixa ele aqui, vamos observar.”

Ao lembrar o episódio, percebo no olhar do “seu Tião” carinho e o respeito pelo amigo de infância que tornara-se médico. Logo que o doutor Toninho vai embora do hospital, a irmã-diretora chega para o “Seu Tião” e o aconselha a transferir o menino de hospital.

Coloca em dúvida a capacidade do Doutor Toninho de fazer uma avaliação confiável, mas recebe como resposta a exigência de que a transferência deveria ser documentada. Com uma simplicidade comovente, o “Seu Tião” me explica com serenidade e clareza que reagiu daquela forma porque não faria nada sem o conhecimento de um especialista. Afinal era o filho dele.

A irmã deveria assinar um termo de responsabilidade onde constariam todas as informações sobre o quadro de saúde do garoto e a justificativa para a transferência. Somente dessa maneira, a família da criança tomaria essa decisão sem o conhecimento do médico, ou seja, do doutor Antônio Aurélio. A irmã não levou a ideia adiante. O filho do “Seu Tião” tem hoje em torno de 40 anos de idade e ótima saúde, me garante o pai.

O doutor Toninho tinha o hábito prescrever receita em guardanapos, não se furtava a responder aos mais estranhos questionamentos. Dono de senso de humor apurado, raramente perdia uma piada ou deixava escapar a chance de dar respostas cretinas ou maliciosas.

Quando perguntado sobre um bom remédio para hemorróidas respondia: chifre de carneiro. Parecido com um grande parafuso bastava, dizia ele, enroscar no local dolorido tal qual uma porca. Quando chegasse no fim da rosca, era necessário puxar com força para fora. Tiro e queda, garantia.

Certa vez, uma senhora bastante tagarela e conhecida na cidade perguntou a ele se era possível engravidar sozinha, apenas por ter usado um banheiro de rodoviária. Explicou ao experiente e bêbado médico que a filha havia sentado em um vaso sanitário sujo, repleto de espertos espermatozóides que acabaram fecundando a incauta menina.

“Isso é possível doutor?”, indagou a mulher de voz estridente, em tom quase autoritário - tamanha a ansiedade diante desse dilema familiar. O doutor Antônio bebeu o copo cachaça de um gole. Vermelho feito pimentão tossiu alto, foi até a porta e pigarreou na rua. Voltou-se para a futura a avó e soltou:

“É perfeitamente possível, dona. Basta que dentro do vaso tenha um... (aqui o nome do órgão é dispensável) desse tamanho!”