quarta-feira, 12 de agosto de 2009

A segunda chance



Carlos dorme, vira-se de um lado para o outro. Abre os olhos de repente. Levanta-se e
vai até a cozinha. No caminho vê um envelope embaixo da porta. Mesmo na penumbra abre e consegue ler o bilhete: " Favor comparecer ao Hemonúcleo Central urgente para tratar de assunto de seu interesse."

- Carlos esta confuso. Tudo esta confuso, o quarto gira em torno dele. Ele diz para si mesmo: - Não deve...Nao pode. (Vira a cabeca para o outro lado. ) Não pode ser...será?
Atrás dele parte da janela mostra o dia comecando, clareando objetos no quarto. O relógio marca 5h30min. "Vou resolver essa historia hoje mesmo", pensou. Tomou banho, um cafe rapido e saiu.

O relogio na parede marca 7h30 min. Carlos está sentado ao lado de outras pessoas numa sala. Na parede, uma placa diz - Hemonúcleo Central. Ao lado tem um calendario. Carlos tem o ar apreensivo. Poe a mao no queixo e sem se deter em nada ou ninguem, olha para o vazio. Comeca a se lembrar da ultima vez que estivera ali.

Foi ha uma semana. Ele tinha um ar feliz e bem disposto. Ao contrario de agora, conversava com as pessoas em volta, brincava com as criancas. Tinha ido doar sangue. Na vez dele, levantou-se e dirigiu-se a atendente.

ELA
- Vai doar para quem?
CARLOS
- Sérgio Gouveia.
ATENDENTE
- É a primeira vez?
CARLOS
- Não. Meu sangue já circula nos outros - e ri, no que a atendente olha para ele fixamente. Tem os olhos verde-agua, morena lindissima. Ele para de rir, ela termina o cadastro e diz para Carlos se dirigir à sala de doacão. Carlos agradece, tocado pela beleza da moca. Faz a doacão. Na saída, é ajudado a descer da cadeira. Coloca o esparadrapo no braco. Ainda conversa de novo com a atendente.
ATENDENTE
- O senhor vai querer o resultado do teste para HIV?
CARLOS
- Como? (Responde, surpreso)
ATENDENTE
- Quem doa sangue tem direito ao exame de HIV gratuito. Fica pronto em uma semana.
CARLOS
- Sim, quero - disse, forcando conviccão.

Quando voltou a si, o relogio marcava 8 horas. Ainda `a espera na sala do hemocentro, voltou a mergulhar em pensamentos. Lembrou-se de Manu. Manuela era o nome da gata. Aquele quarto colorido. Uma transa louca. Objetos pelo chao, Manuela grita, geme.
- Vai meu garanhão! Carlos, você é demais! Ele tinha uma expressão tranquila. Manu ainda disse suspirando: - Não queria sair daqui nunca mais...
Lembrou-se da cara de assutado quando olhou para o bilau. A camisinha, aberta, estourada.

- A porra da camisinha estourou! Disse despertando dos pensamentos, enquanto do seu lado um homem o olhava, atento.
Carlos recompos-se, levantou e tomou um gole de água. A mesma atendente gostosa ja nao lhe chamava tanto a atencao. Foi até a mesinha no centro da sala e pegou uma revista. Retornou a seu lugar na sala de espera. De repente, fecha a revista e vai ate o banheiro, se olha no espelho.

- Será? Mas ela parecia tão, tão... - Anda de um lado para o outro. A lembranca do corpo de Manuela a tortura-lo.
- Não! Definitivamente.

Carlos volta ao lugar na fila. Levanta-se e vai ate a atendente. Como penitencia, mexe negativamente a cabeca ao mirar a bunda da moca. Pergunta: - Vai demorar muito?
- So mais um minuto. (Diz a moca, e depois entra numa sala.)
- So mais um minuto! (Babucia Carlos. Depois vira-se para um homem que aguarda atras dele e diz - Ela nao tem nocao do que significa um minuto para mim.

Ah! Vida que e tao cara! E recita o trecho de um poema de Fernando Pessoa. Com cara de assustado o homem faz sinal de concordancia, mas depois se afasta um pouco.
A moca volta com um envelope na mao. Abre sem cerimonia e quando abre a boca a vista de Carlos se embaca. Ele desmaia, no que e socorrido pelas pessoas em volta.

Acorda no quarto do hospital. Pergunta ao medico - Quanto tempo eu tenho, doutor.
O medico diz - O bastante. Tem plano de saude? Voce foi atendido aqui mesmo, do lado do hemocentro e esse hospital e particular.
- Nao vou continuar meu tratamento aqui. Alem do mais, o senhor sabe que planos de saude nao cobrem esse tipo de doenca.
Carlos responde e olha o medico fixamente, mas parece ter o olhar perdido, como alguem sem esperancas. O Medico diz: Como nao? Voce precisa fazer uns exames, mas sao cobertos pelo seu plano.
Carlos continua a se queixar - E os medicamentos, doutor? Terei que arcar com eles de qualquer forma.
- Isso realmente nao tem jeito - disse o medico secamente, e ja se dirigia ate a porta quando Carlos comeca a chorar. O medico que ia saindo, se detem junto a porta.

Carlos esbraveja: Tudo culpa minha mesmo. Burro! Burro! (Grita entre solucos)
- Nao e para tanto...diz o medico. Carlos completa:
- Pensei com a cabeca de baixo, doutor. Homem e tudo idiota mesmo. E ainda comprei aquela camisinha vagabunda... Eu a conheci na mesma noite, doutor. Nos demos muito bem e acabamos no apartamento dela.
Lembrava claramente dos amassos, a cena dos dois se beijando. Continuou a lamuria: Foi magico...e tragico! Olha a minha situacao agora! Ela tambem, mas podia ter me contado. Que vai ser agora... (Chora)

A porta do quarto se mexe. Chega a atendente. - Senhor Carlos?
Carlos enxuga o rosto, tenta se refazer.
A atendente diz: Seu exame de HIV... Deu negativo. Quando o senhor vem doar de novo?

domingo, 9 de agosto de 2009

Carta ao meu pai



Hoje acordei tomado pela lembrança de meu pai, como já aconteceu milhares de outras vezes, mas sem que escrevesse sobre isso. Tanto mais difícil. É uma carta, que creio de alguma forma vai chegar ao destinatário, levada pela esperança de poder assim tapar alguns buracos, corrigir algumas falhas, dizer algumas coisas que não foram ditas.

Na verdade muito ficou por dizer. Mas nós dois convivemos o bastante para entendermos razoavelmente um ao outro. Por vezes o silêncio foi eloqüente: tanto para sufocar a dor, engolir o choro e aceitar teu olhar severo... como para confiar, esfriar os ânimos, aquietar. Calado, como querias; consenti, sem querer.

Bem mais tarde, há pouco tempo, vim a descobrir que em grande parte das vezes tinhas razão, pai. Porque agora sou eu a me enraivecer com as coisinhas de adolescente que assisto, pequenas teimosias e atitudes inconseqüentes que presencio. Hoje sei que isso não tem nada a ver com liberdade. É só chantagem, ou como dizias, má-criação.

Sinto falta das conversas na porta de casa. Tenho saudade dos finais de tarde, quando colocavas as cadeiras lá fora e nós ficávamos em volta – costume que durou até quando ainda tinhas forças. A vontade de ver a rua se foi ao poucos, por causa da catarata, não é? Sei que ficas satisfeito em saber que preservei, de certa forma, esse costume.

Lembro-me de como gostavas de trabalhar em casa, nos pequenos canteiros de verduras e legumes no quintal. É como se ouvisse agora tua queixa: “Não tenho mais como saber se os tomates estão verdes ou maduros.”

Hoje consigo ver além do que podem meus olhos, pai, porque enxergo com a sabedoria de quem viveu ao teu lado. Não sou como tu, absolutamente. Mas não seria metade do que sou, se não fosse por tua causa.

(*) Marcos Alves é jornalista.