quinta-feira, 26 de março de 2015

SEGUNDA CHANCE





 Carlos tem um sono agitado naquela noite. Rosna, fala sozinho, vira-se de um lado para o outro. Abre os olhos de repente. Levanta-se e vai até a cozinha. No caminho vê um envelope embaixo da porta. Mesmo na penumbra abre e consegue ler o bilhete: “Favor comparecer ao Hemonúcleo Central. Urgente. O assunto é de seu interesse.”

 Ele está confuso. Tudo está confuso, o quarto gira. Diz para si mesmo: - Não deve ser...Não pode. (Vira a cabeça para o outro lado. ) Não pode ser...será?
Atrás dele parte da janela mostra o dia começando, clareando objetos no quarto. O relógio marca cinco e meia. Ainda está escuro o céu da manhã de junho. Ansioso, ele decide. "Vou resolver essa história hoje mesmo", pensou. Tomou banho, um café rápido e saiu.

O relógio na parede marca 7h30 min. Carlos está sentado ao lado de outras pessoas numa sala.  Na parede a placa diz - Hemonúcleo Central. Ao lado tem um calendário. Carlos tem o ar apreensivo. Põe a mão no queixo e sem se deter em nada ou ninguém, olha o vazio. Como num filme em flash-back, começa a se lembrar da ultima vez que estivera ali.

Foi há uma semana. Ele tinha um ar feliz e bem disposto. Ao contrário de agora, conversava com outras pessoas que tinham ido doar sangue, brincava com as crianças. Na vez dele, levantou-se e foi até o atendimento.
A atendente pergunta:  - Vai doar para quem?
Carlos diz que é para um amigo, o nome está na lista.
Ela volta a perguntar:  - É a primeira vez?
Ele: - Não. Meu sangue já circula nos outros - e ri, no que a atendente olha para ele sem achar graça.

A moça tem os olhos verdes – “morena lindíssima!”, pensou ele. Ela termina o cadastro e diz para Carlos se dirigir à sala de doação. Carlos agradece, tocado pela beleza da moça. Faz a doação, dura meia hora. “É rápido e até que não dói nada”, refletiu, satisfeito por ter ajudado um amigo. Uma enfermeira o ajuda a descer da cadeira. Coloca o esparadrapo no lugar da picada. Já de pé, é interceptado de novo pela atendente.

 - O senhor vai querer o resultado do teste para HIV?
Carlos se assusta um pouco.  - Como? (Pergunta, surpreso). A atendente, com tranqüilidade, complementa:  - Quem doa sangue tem direito ao exame de HIV gratuito. Fica pronto em uma semana.
Carlos aceita. - Sim, quero - disse, ainda que forçando convicção.

Ele abre os olhos, como que saindo de um sono profundo. O relógio do banco de sangue marca 8 horas. E ele ali, ainda à espera do resultado do exame na sala do hemocentro.

Voltou a mergulhar em pensamentos. Lembrou-se de Manu. Manuela era o nome da gata. Aquele quarto colorido. Uma  transa louca. Objetos pelo chão, Manuela grita, geme.
 - Vai meu garanhão! Carlos, você é demais! Ele tinha uma expressão tranquila. Manu ainda disse suspirando: - Não queria sair daqui nunca mais...
Lembrou-se da cara de assustado quando olhou para o bilau. A camisinha, aberta, estourada.

 - A porra da camisinha estourou! Ele diz em voz alta, as pessoas em volta olham para ele. Uma mãe puxa um garoto pelo braço e se afastam. Carlos recompôs-se, levantou e tomou um gole de água. A mesma atendente já não lhe chamava tanto a atenção. Foi até a mesinha no centro da sala e pegou uma revista. Retomou o lugar na sala de espera. De repente, fecha a revista e vai até o banheiro. Enquanto se olha no espelho, mexe os lábios, balbucia. Uma ansiedade ia tomando conta, o corpo esquentando, um tremor, o suor umedecendo as mãos, a testa. Uma sensação de que algo assustador estava por ser revelado. - Será? Mas ela parecia tão, tão... - Anda de um lado para o outro. A lembrança do corpo de Manuela a torturá-lo.
 - Não! Definitivamente.

Carlos volta ao lugar na fila. Levanta-se e vai até a atendente. Como se fosse penitência, mexe negativamente a cabeça ao mirar a bunda da moca. Pergunta:  - Vai demorar muito?
 - Só mais um minuto. (Diz a moca, e depois entra numa sala.)
 - Só mais um minuto! (Reclama. Depois vira-se para um homem que aguarda atrás dele e diz - Ela não tem noção do que significa um minuto para mim.

Ah! Vida que é tão cara! E recita o trecho de um poema de Fernando Pessoa. Com cara de assustado o homem do lado faz sinal de concordância, depois parece ter pena e também se afasta um pouco.
A moça volta com um envelope na mão. Abre sem fazer cerimônia e quando começa a ler o conteúdo, a vista de Carlos embaça. Ele desmaia, no que é socorrido pelas pessoas em volta.

Acorda num quarto de hospital. Pergunta ao médico:
 - Quanto tempo eu tenho, doutor?
O médico diz  - O bastante. Tem plano de saúde? Você foi atendido aqui mesmo, do lado do hemocentro e esse hospital é particular...
 - Não vou continuar meu tratamento aqui, doutor – disse Carlos, resignado. Além do mais, o senhor sabe que os planos de saúde não cobrem o tratamento dessa doença.

Carlos olha o médico fixamente, mas parece ter o olhar perdido, como quem já não tem esperança. O Médico diz: Como não cobrem? Você precisa fazer uns exames, mas todos são cobertos pelo seu plano. Carlos continua a se queixar - E os medicamentos, doutor?  Terei que arcar com eles de qualquer forma...
 - Isso realmente não tem jeito - disse o medico secamente, e já se dirigia ate a porta quando Carlos começa a chorar. O médico que ia saindo, se detém e olha a cena, incrédulo.

Carlos bate com os punhos no colchão e esbraveja entre soluços: Tudo culpa minha mesmo. Burro! Burro!
 - Não é para tanto...diz o médico.
Carlos completa: - Homem é tudo idiota mesmo. E ainda comprei aquela camisinha vagabunda... Eu a conheci na mesma noite, doutor. Nos demos muito bem e acabamos no apartamento dela.
Lembrava claramente dos amassos, a cena dos dois se beijando. Continuou a lamúria: Foi mágico...e trágico! Olha a minha situação agora! Ela também, mas podia ter me contado. Que vai ser agora.??.. (Chora)

A porta do quarto se mexe. Chega a atendente.  - Senhor Carlos?
Carlos enxuga o rosto, tenta se refazer.
A atendente diz: Seu exame de HIV... deu negativo. Quando o senhor vem doar sangue de novo?