terça-feira, 5 de julho de 2011

Porta de cadeia




Um grupo de seis adolescentes é preso em Contagem, cidade vizinha a Belo Horizonte. Entraram em um ônibus com uma réplica de revólver, e levaram tudo o que os passageiros entregaram: celulares e o dinheiro do bolso. Teriam esquecido os relógios e cordões?

Permaneceram dentro do ônibus, queriam descer “em outro ponto”, relatou o motorista na delegacia. Algumas pessoas desceram antes, avisaram um carro da polícia e o ônibus foi interceptado e eles foram recolhidos (Na maioria das redações se proíbe escrever que um menor é preso, por ser ilegal, mas na prática... basta ver a garota de 15 anos que ficou em uma cela com vários homens, no Pará!).

Não tinham ainda passagem pela polícia; informação passada logo depois. Apenas dois têm mais de 18 anos, os outros são menores, inclusive duas meninas que participaram do assalto.

Foram para a delegacia com menos de cem pratas, dois ou três celulares e pagaram o mico de tomar beliscões das mães, ainda na calçada. ”Iniciantes”, pensei, moleques com um futuro pouco encorajador e um presente perigoso.

As mães encostadas no muro do prédio esperam, há pouco o que fazer. Em volta, apenas curiosos e o pessoal da imprensa, uns poucos gatos pingados. Uma delas, atrapalhada com microfones, responde que não sabe o que houve.
- Meu menino anda diferente. A mãe sabe quando um filho está diferente...

Fala enquanto chora, e ouve a próxima pergunta.
- Diferente como?
A mulher suspira, e em menos de um segundo ouve a próxima.
- Não comia em casa? Não dormia em casa? Ele estava estranho?
- Não. Ele... Ah, não consigo.

Chega outro repórter e pergunta se a mulher era parente de algum dos garotos. Ela tem vergonha, olha para baixo.

Os adolescentes, antes à vontade, apressam-se em cobrir os rostos para as câmeras de TV que surgem no corredor. Conversam, cochicham entre si, forçando a testa contra a parede, um clichê que eles devem ter aprendido com as milhares de vezes que viram isso na TV.

Talvez no dia seguinte estejam nas páginas policiais de um jornal qualquer, talvez não. Pode surgir uma notícia mais forte, um assalto a banco ou algo melhor, quem sabe uma chacina? Mas se não rolar nada vai ser esse mesmo. GANGUE DO ÔNIBUS ACABA NO XADREZ

Arma, bandidos, celulares e dinheiro. Isso basta, está armada a lona, deixa o circo pegar fogo.
- Era um menino bom, me respeita em casa, é evangélico. Ele não vai mais fazer isso.

A mãe tem sincera esperança nas palavras e o coração despedaçado. Agarra a grade com mão e olha uma vez mais para dentro. Na porta, policiais conversam relaxados, indiferentes à sua tristeza. Na verdade, alguns deles como alguns jornalistas, podem até pensar no sofrimento dessa mãe.

Ela ainda vai tentar “consertar” o menino ou a menina – um bom “puxão de orelhas” pode ser redentor nesses casos. Mas ninguém mais se ilude nesse campo no Brasil. Claro, com tantos crimes cometidos por jovens! O ruim mesmo é que fora essa desilusão restam poucas, raras alternativas capazes de resgatar esses brasileiros perdidos. Restam as mães que ainda esperam os filhos voltarem para casa.

domingo, 6 de março de 2011

Fantasia e realidade




Em busca do texto perfeito, ele insiste em dedilhar o teclado. Sabendo de antemão que ao final das frases restará uma sensação desagradável. Quase sempre fica insatisfeito. Nada além de uma idéia não terminada ou mal escrita. Quer uma boa história, com picardia, humor, paixão. "Mas um ser tão impregnado das `coisas`, desse nosso tempo jamais pode escrever algo assim", auto-censurou-se. "Preciso me libertar da concepção adquirida no trabalho acerca do ofício de escrever. Livrar-me dos desejos, crenças e formalidades arraigadas em minha personalidade. Mas me falta coragem, aproach (estou contaminado por um certo colonialismo cultural e suspeito ser essa uma das causas do meu fracasso como pensador). Resisto à idéia de desistir. Mas estou ficando desesperançado, pois a cada dia recomeço as frases e logo sou levado a interromper."

Enquanto ele se queixava, ela abriu a porta do quarto e perguntou. – Vamos? Sem disfarçar o aborrecimento ele desvia o olhar para o chão, exprimindo cansaço.

– Ainda não terminei.
-Nem vai terminar, querido, porque são oito e meia e a festa é às nove. Sabe como Alice é pontual e nota quando alguém se atrasa nas festas de aniversário das filhas. Ainda mais sendo aniversário da Júlia, vc sabe...

Ela continuou a falar , enquanto ele permaneceu imerso em pensamentos sobre a dificuldade de conciliar a mente etérea e fluida com os compromissos terrenos.

No chuveiro, ele pegou o sabonete e começou a se esfregar vagarosamente. O artigo era para segunda feira. Teria ainda o domingo para terminar. Quem sabe amanhã teria uma boa idéia, aproveitaria uma notícia de jornal, acharia um gancho para o texto.

- Onde estão as meias limpas?
- Não sei, acho que no armário, na terceira gaveta.

Vestiu a roupa, ajeitou o cabelo, a mulher já pronta, as crianças no carro. Foram para a festa de aniversário.

Barulho de apitos, Karaokê, piscina de bolinhas, a mesa decorada com figuras de uma conhecida heroína infantil. "Bacana, de qualquer forma é bom se distrair um pouco", pensou. De ruim, apenas as conversas inevitáveis com cunhados, amigos dos cunhados, carros, futebol, e piadinhas de mau gosto sobre mulheres, pretos e viados. O de sempre. No meio do salão, uma bela jovem se incumbia de brincar com a criançada. De vez em quando pegavam um adulto para cristo e o colocavam no meio da roda. Ele procurou um lugar de difícil acesso, a cadeira mais escondida da última mesa, perto da cortina. Ali estaria seguro.

Mas cismaram com ele. Foram até lá e o trouxeram pela mão, todo sem jeito, para a brincadeira. Teve que dançar um bolero com a mãe da aniversariante, e até que não foi tão ruim. Lembrou-se de Nelson Rodrigues, dos desejos inconfessáveis que surgem nas horas mais impróprias. Aquele corpo... estava com as mãos nas costas mais lindas que já tinha tocado. Agora a ocasião permitia. Dançaram até o fim da música, e ele teve a sensação de que ela demorou-se um pouco a desfazer a posição em que ficaram por longos e gostosos minutos. Não foi tão ruim, pelo contrário e ele voltou a se sentar com o humor refeito. Bebeu um gole de cerveja, comentou com a sogra que há tempos não dançava, e que estava feliz com a performance.

De repente, lá fora, um carro da polícia chama a atenção dos convidados. Uma criança morreu durante uma troca de tiros entre bandidos, e a polícia veio avisar a mãe. A mulher, de cinqüenta e poucos anos, saiu arrasada. Trabalhava como doméstica na casa de uma convidada e estava ajudando na festa. Segundo a Polícia Militar, Bruna de Castro Souza, de 12 anos, foi baleada na cabeça e no pescoço. A garota ainda foi socorrida, mas já chegou morta ao hospital. Muito abalada, a família disse que a menina tinha saído de casa para comprar um doce, e acabou sendo ferida no tiroteio. De acordo com a PM, a menina tentou fugir de uma briga de gangues que disputam o tráfico de drogas no local.

Ele perdeu o humor, mas conseguiu o tema para o artigo. Não, não precisaria mais do texto perfeito, esse podia esperar. Iria falar agora de algo mais urgente. O clima de guerra civil num país desigual e corrupto. O trivial do jornalismo. O tipo de assunto que vende e desperta comoção. Outro dia, talvez, iria se sentar para escrever o texto almejado. Quando pudesse falar do quanto desejou àquela mulher com quem dançou o bolero. Quando pudesse sentir a verdade saindo da alma e não tivesse vergonha ou medo. Quando fosse humano o suficiente para errar e deixar pistas. Quando deixasse de lado a dissimulação e os artifícios baratos para satisfazer a família, a empresa, os amigos. Quando estivesse com o coração limpo, mesmo correndo riscos. Como a menina que morreu a caminho do bar, onde iria comprar um doce.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Linhas cruzadas



Celso discute em altos brados com a mulher, Laura. Ela duvida da fidelidade do marido e suas suspeitas aumentaram depois da última noite, quando ele chegou tarde, “com a roupa cheirando a cigarro e perfume barato”, as últimas palavras dela antes do telefone tocar. Celso atende.
- Alô?
- Celso?
- Ele!
- É Oscar, gerente do banco.

Celso faz uma careta, costuma fazer expressão de dor nessas ocasiões, coisa que sempre diverte Laura, mas dessa vez ela não moveu um músculo sequer do rosto. Ele começa a conversa: “Oi, tudo bem?” Mas logo diz “um minuto só” e larga o telefone para atender ao celular, que também toca.
- Alô.
- Celso, é Mauro. E aí, cara deu merda?

Ele larga o telefone assim que escuta outra insinuação da mulher.
- Eu sei muito bem o que você foi fazer lá...Você e aquele seu amigo que nem gosto de falar o nome...
- Mauro...
- Esse mesmo. Cadê ele? Por que você acompanha esse tipo de pessoa? Esse babaca é um irresponsável, Celso, é por isso que a Telma está quase separada dele!

Celso esquece os telefones, celular e fixo, senta no sofá, passa as mãos pela cabeça, respira fundo e começa a falar calmamente, em voz baixa e tom ameno.
- Eu já disse a você que não, não aconteceu nenhuma sacanagem nessa maldita festa. Eu não sei como a Telma e o Mauro estão, não os vi ontem e repito: só passei lá porque o pessoal insistiu muito, e queria ver a tia Lourdes, estava com saudades e ela ficaria sentida se eu não fosse. Aliás, nunca mais falei com o Mauro depois daquele dia em que estávamos todos lá, na casa dela. Quando foi mesmo?
- Olha, não vem com esse papo, essa conversinha mole que eu não vou cair não, tá? E tem mais, estou sabendo que a Mônica e a Marluce estavam na tal festinha de ontem. A Telma já tinha me alertado sobre essas piranhas!
- Você está completamente doida!

Celso praticamente ignora a última acusação e, com uma distinção britânica, pega o telefone celular de volta.
- Pode falar Oscar, o que você quer?
- É o Mauro, cara.

Ele se encolhe e tapa a boca com uma das mãos ao falar baixinho, mas com energia:
- Nossa! Dá um tempo aí, pô! Mas não desliga não, já falo contigo.

Joga o celular no sofá e pega o fixo.
- Alô, João Paulo, pode falar.
- Não é João Paulo, é Oscar.
Ah...desculpe, Oscar.

E se fazendo de esquecido, pergunta:
- Sobre o que falávamos?
- Sua conta está estourada.

A mulher solta outro impropério, lá do banheiro, tão alto que até o gerente do banco e o Mauro ouviram. Celso esquece os telefones e vai até o meio da sala.
- Por que não diz logo quem foi que me envenenou com você, Laura?
- Ninguém me disse não. Dá para ver na sua cara!

Celso sabia que ela falava assim para jogar um verde, desequilibrá-lo, arrancar uma confissão ou quase isso. Lembrava de quando chegou tarde do futebol por causa de uma esticadinha no churrasco da república das meninas e de tanto ela dizer que estava “na cara que ele tinha aprontado” acabou dizendo que sim, que tinha ido a um churrasco e tinha mulher lá, mas não se engraçou com ninguém porque era casado, amava a família e tal e essas coisas. Na verdade, nesse dia ficou tão bêbado que depois de certo tempo mal conseguia conversar na festa. “Dessa vez não serei tão ingênuo”, pensou.

Celso pega o telefone celular. Na verdade, começa a ficar meio atordoado.
- Ainda bem que você não desligou. Minha mulher está muito, muito desconfiada. Mas eu não posso cair...a coisa já não está boa, devendo no banco e tudo. Como é que eu vou para um hotel ou coisa parecida? Vou morrer na sarjeta!

A ligação é ruim. Ele nem ouve quem está do outro lado e fala sem parar.
- Quer dizer... não aconteceu quase nada, ficamos conversando, dei uma alisadinha nas coxas dela. Rapaz, que espetáculo! Mas não passou disso, sabe? Bem, depois que você saiu o bicho pegou, mas não tinha mais ninguém lá. Só eu, o Marcos e as garotas, certo? Olha, vou desligar. Minha mulher pode aparecer a qualquer momento.

Desliga e pega o telefone fixo.
- Oscar! Vou ver o que consigo para cobrir isso aí.
- Celso, acho melhor eu ligar em outra hora. Melhor, liga você para mim. Bateram alguns cheques na sua conta e o limite do especial estourou, é preciso cobrir. Mas pelo jeito, você tem algo mais urgente pra resolver.

Telma, que tinha pego o celular do Mauro por acaso e ouviu a história toda, a essa altura discava para o celular de Laura.

(*) Jornalista

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Necessidade




A arte é necessária,
como o carinho,
o adorno, o afago.

Tanto quanto o abraço,
o esforço, o esmero,
que não são arte,
mas condição para ser humano.

O suporte,o estofo,
o motor da história,
mas não arte.

Arte é um sopro,
Um toque, um espasmo, um grito.
O átomo e a montanha,
o homem e a natureza.

A paz é arte,
assim como o fogo.
Há quem diga
que há guerra
no estado da arte.

Arte, para mim, é o olhar de minha avó.
Parecido com outros que vi,
por aí, mas nunca iguais,
ao olhar sereno e forte
de Dona Adozinda.

O deleite dos sentidos:
Miró, Rosa, Goethe, Rimbaud.
Da Vinci, Proust,
Tom Jobim, Led Zeppelin,
Buñuel e... quem mais?

Se não fosse pela arte
Tudo seria insuportavelmente prático.
E a vida reduzida a pequenas escolhas.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O pai dos pobres




Era um cara popular. “Homem de carisma!” – garantiam os mais próximos. Apresentador de TV, fazia sucesso prometendo resolver os problemas dos humildes, dos “sem oportunidade, dos sem casa, sem-amor, sem-salário, sem-esperança”.

Atuava no varejo. Pinçava um desgraçado qualquer e o colocava diante das câmeras a implorar por ajuda, depois de destilar seu rosário de miséria, não ocasionalmente seguido de um choro incontido – tanto melhor para os números! Quando a “vítima” chora, aí é o momento de emendar um begezinho adequado, uma música bem triste para e-mo-cio-nar.

Se o convidado, ou convidada, começava a rir, reação natural pelo nervosismo de estar na TV, ao vivo, ele emendava: “É sem-vergonha!” – e o sonoplasta emenda outra música, agora com letra de duplo sentido, cheia de escárnio e palavrões.

Gargalhadas no estúdio – a claque era formada pelos técnicos, curiosos e amigos e parentes de convidados. Depois o apresentador muda de câmera e, em close (imagem fechada no rosto, quase um 3x4), pede silêncio. Vira-se para o convidado, agora em tom sério e com o semblante preocupado e pede para que ele relate o problema que o leva a procurar ajuda.

O miserável diz que está desempregado, a noiva espera uma criança para o mês que vem. Quer uma máquina de pipoca, um carrinho para trabalhar de ambulante. O apresentador ainda pergunta outras coisas antes de tecer um comentário fascista sobre a situação difícil desse “brasileiro sofrido”. Chama a atenção das autoridades, diz que isso não é possível, muda de câmera de novo e garante: vai resolver o problema do rapaz.

Termina o programa, o apresentador sai do estúdio sorridente. Com ar cansado diz que precisa ir embora rápido, tem compromissos importantes. Não vê a fila de gente esperando no corredor de entrada da emissora. Entra no carro, levanta uma nuvem de poeira antes de deixar o estacionamento e também não vê a outra fila, ainda maior, do pessoal que nem conseguiu entrar.

A audiência crescera geometricamente e o camarada faturava alto. Ele chegou dirigindo um carro velho, agora estava de camionete importada. Trocara também de apartamento, e “até de mulher” gostava de frisar. Vivia agora uma doce rotina de viagens, e despesas caras com roupas, restaurantes e hotéis.

Graças a um público fiel, sempre disposto a passar por uma ´humilhaçãozinha” para conseguir uma ajuda, se tornou o “Pai dos pobres”, diziam os fãs, alguns ali na fila interminável. “Vai atender a todos nós”, acreditavam.

“Será ?”, soprou uma voz fraca, no meio daquela gente toda. “Vai sim, ele disse que vai!”, respondeu uma defensora do homem, procurando saber de onde surgiu a dúvida. Veio de uma senhora sentada em uma cadeira de rodas, os braços finos, fracos, o rosto cansado e a alma desconfiada de tanta benevolência.

A necessidade de ter uma nova cadeira falou mais alto e lá estava ela, na fila. Era a terceira vez que vinha, em 2 meses, e ainda não tinha conseguido vaga na “Tribuna do Povo” – espécie de púlpito colocado no estúdio onde as pessoas falavam de seus problemas e faziam os pedidos.

Alguns meses passaram e a fila ficava cada vez maior. “Viu só aquilo?”, disse um produtor do programa. “Onde vai parar isso?”. “No topo, amigo. Só vai parar quando chegarmos ao topo”. A resposta foi dada pelo próprio apresentador, que entrou na redação depois de passar pelos pedintes protegido pelos vidros escuros do carro.

Mas a situação preocupava. A fila na porta da emissora não estava como nos outros dias. O atendimento era demorado e a maioria não ia ser atendida – nem se o programa ainda ficasse 10 anos no ar. Mas como comunicar isso àquela multidão?

O apresentador tem uma idéia. “Vamos amenizar o discurso, diminuir as doações. Depois a gente pensa em um novo ‘gancho’ para o programa, mas sem tanto assistencialismo, que esse negócio anda ficando muito caro. O empresário doa, mas depois exige merchandising e onde é que fica o meu? Cadê o meu?!”, falou, aos berros, como de costume.

Depois, continuou. “Saúde e emprego são problemas do governo. Se eles não dão jeito, a gente é que vai dar?” Vira-se para a assistente de produção e ordena: “Paula, vai lá fora e avisa que as inscrições foram suspensas por tempo indeterminado”.

A moça chega até o portão, mas nem consegue abrir a boca. As pessoas se jogam aos pés dela, mostram feridas, braços engessados, muletas, fotografias de pessoas convalescendo em leitos de hospitais, cartas mal-escritas, sujas e amarrotadas. Prestes a receber o diploma de jornalista, nunca esteve tão perto do desespero do povo brasileiro.

Paula não consegue cumprir a ordem e leva um esporro do apresentador. “Eu mesmo vou lá, não mando recado. Deixa comigo”, e saiu em direção ao portão da empresa. “Minha gente!” Não teve tempo de dizer a segunda frase, foi agarrado, puxado pela gravata, caiu no meio da rua. Ele também nunca havia sentido o cheiro do povo tão de perto.

Perdeu os óculos na queda, e teve uma visão embaçada das cartas, dos rostos, das mãos. Levantou-se, ajeitou os cabelos, a gravata, tirou o pó e levantou uma das mãos. Queria terminar logo aquilo. “A partir de segunda-feira, vocês não precisam mais vir aqui. Basta telefonar ou mandar um e-mail, peçam para seus filhos, sobrinhos, amigos... E dentro do possível, iremos atender a....”

De novo, não teve tempo de terminar a frase. Foi uma confusão total. Antes fiéis admiradores, as pessoas agora ficaram hostis, agressivas. O apresentador ao perceber que seus argumentos só aumentavam a ira daquela gente toda ergueu as mãos para a guarita, pediu ajuda dos seguranças. Mas todos estavam ocupados em proteger o patrimônio da empresa, no caso, os vidros da fachada ameaçados por paus e pedras nas mãos dos revoltosos.

Nada foi suficiente para convencer aquela gente a desistir. Os vidros foram quebrados, a sala de espera destruída. Um cenário de guerra: poltronas rasgadas, terminais de computador jogados no chão, pedaços de madeira, plástico e materiais usados em cenários, tudo espalhado, pisoteado, inutilizado.

“Essa gente não tem educação mesmo”. A boca costurada dificulta a pronúncia e a compreensão, mas os filhos e a mulher do apresentador entenderam a frase. Nem na cama do hospital, ele alterou o estilo.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Médico de interior





Antônio Aurélio Filho, me garante o distinto senhor atrás do balcão, é o nome completo do médico popularmente conhecido como “doutor Toninho” em Paraguaçu, cidade do interior de Minas onde nasceu e trabalhou por décadas, até morrer.

Homem de temperamento forte, chegado a um copo e repito, médico dos bons, “doutor Toninho” é personagem central de casos folclóricos, geralmente envolvendo outras pessoas da cidade em situações bastante interessantes. Deixou muitas histórias, e trago na memória algumas cenas dele ao lado de minha avó, de quem cuidou até o final da vida com atenção e competência.

Na época em que o doutor Antônio trabalhou, o único hospital da cidade era administrado por freiras, com mão de ferro e rígidas regras de conduta. É possível imaginar quanto o comportamento, digamos, “rebelde” do “doutor Toninho” incomodava as irmãs. Mas ele era natural da cidade e como médico conquistara prestígio e respeito em todas as camadas sociais.

A conversa em torno do "Doutor Toninho"" se estendia, enquanto apreciávamos uma cerveja gelada na tarde quente de Paraguaçu. O “seu Tião”, dono do bar, foi quem revelou o nome inteiro do nosso personagem e, indagado sobre alguma história curiosa disse que certa vez o filho dele estivera internado com suspeita de meningite.

Os exames que poderiam comprovar a doença não podiam ser feitos em Paraguaçu, cidade carente de recursos. Para isso, o filho do “seu Tião” teria que ser transferido para outra cidade. À espera de uma definição, a família não arredava pé da porta do hospital.

Tarde da noite, o “doutor Toninho” chega - visivelmente embriagado, para visitar a criança. Meia hora depois, o médico volta e tranqüiliza “seu Tião” e os demais. “O rapazinho não tem meningite, deixa ele aqui, vamos observar.”

Ao lembrar o episódio, percebo no olhar do “seu Tião” carinho e o respeito pelo amigo de infância que tornara-se médico. Logo que o doutor Toninho vai embora do hospital, a irmã-diretora chega para o “Seu Tião” e o aconselha a transferir o menino de hospital.

Coloca em dúvida a capacidade do Doutor Toninho de fazer uma avaliação confiável, mas recebe como resposta a exigência de que a transferência deveria ser documentada. Com uma simplicidade comovente, o “Seu Tião” me explica com serenidade e clareza que reagiu daquela forma porque não faria nada sem o conhecimento de um especialista. Afinal era o filho dele.

A irmã deveria assinar um termo de responsabilidade onde constariam todas as informações sobre o quadro de saúde do garoto e a justificativa para a transferência. Somente dessa maneira, a família da criança tomaria essa decisão sem o conhecimento do médico, ou seja, do doutor Antônio Aurélio. A irmã não levou a ideia adiante. O filho do “Seu Tião” tem hoje em torno de 40 anos de idade e ótima saúde, me garante o pai.

O doutor Toninho tinha o hábito prescrever receita em guardanapos, não se furtava a responder aos mais estranhos questionamentos. Dono de senso de humor apurado, raramente perdia uma piada ou deixava escapar a chance de dar respostas cretinas ou maliciosas.

Quando perguntado sobre um bom remédio para hemorróidas respondia: chifre de carneiro. Parecido com um grande parafuso bastava, dizia ele, enroscar no local dolorido tal qual uma porca. Quando chegasse no fim da rosca, era necessário puxar com força para fora. Tiro e queda, garantia.

Certa vez, uma senhora bastante tagarela e conhecida na cidade perguntou a ele se era possível engravidar sozinha, apenas por ter usado um banheiro de rodoviária. Explicou ao experiente e bêbado médico que a filha havia sentado em um vaso sanitário sujo, repleto de espertos espermatozóides que acabaram fecundando a incauta menina.

“Isso é possível doutor?”, indagou a mulher de voz estridente, em tom quase autoritário - tamanha a ansiedade diante desse dilema familiar. O doutor Antônio bebeu o copo cachaça de um gole. Vermelho feito pimentão tossiu alto, foi até a porta e pigarreou na rua. Voltou-se para a futura a avó e soltou:

“É perfeitamente possível, dona. Basta que dentro do vaso tenha um... (aqui o nome do órgão é dispensável) desse tamanho!”