quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Corrida de obstáculos



Enfiou a chave com cuidado... Girou para a esquerda de mansinho, assim e a cada estalo mínimo que saía de dentro do tambor fazia uma careta. “Seis da manhã, Romualdo. Dessa vez tu exagerou irmão”, pensava. Quanto finalmente conseguiu entrar deu de cara com o relógio que marca: Seis e dez! “Quase acertei”.

Um domingo que já se anunciava de sol, desses de gente na rua, crianças em bicicletas e senhores de moleton fazendo caminhada. Mas para o Romualdo, com aquela cara de ontem e bafo de bebida, não ia dar.

Tudo bem. "Foi só para extravasar um pouco. Não peguei ninguém – mas até que rolou uma troca de olhares, ora com a mulata generosa que insistia em me reparar, ora com o cara que estava com ela, que ficava vigiando o bar inteiro! Esse sim eu diria que não pegou nada mesmo”, Romualdo feito retardado ficava formulando meio que os melhores momentos da madrugada na cabeça.

O ruim vai ser explicar para a mulher que não tinha passado disso mesmo. Claro que a história que ele ia contar não era bem essa mas pelo menos já tinha um roteiro inicial e... a merda é que elas nunca acreditam. Bom, é melhor tirar essa mesinha da frente, que o passo ainda não está firme...

Beleza, missão cumprida. Agora é só...Deus! O abajur...Como irá fazer para se desviar desse objeto infeliz que fica no caminho para o banheiro? É um corredor muito estreito, e ele terá que ser percorrido com extremo equilíbrio e responsabilidade, porque logo depois tem o aparador e aquele monte de porta-retratos.

Calma, calma. Devagar, assim, devagarinho...está quase lá. Pronto, enfim o banheiro. Ué...todo arrumado, parece que ninguém usa isso há séculos! Nem toalha tem aqui, gente. Cadê o papel higiênico? E essa cueca?

Cueca? De quem é essa cueca suja e desbotada? Romualdo fica doido. Indignado. Sente uma pontada no peito. Amedrontado, solta um berro: Marta! Marta! De quem é isso aqui? Marta! Marta! Ninguém responde. O que está acontecendo?!

Romualdo, meio zonzo, saiu do banheiro. Agora, não sentiu vontade de seguir as regras desse código subliminar que rege as relações humanas, amorosas e não-amorosas, mas que incluem o interesse comum por algo que não tem como ser regido por um, apenas por dois.

Sem cerimônia e nenhum cuidado esbarrou no aparador, derrubou o porta-retratos, quebrou o abajur, quase chorou de dor ao bater a canela na mesinha da sala e com muita dificuldade abriu a porta do quarto de casal. Não havia ninguém em casa.

“Essa ingrata está mesmo me traindo”. Um pensamento piegas o pegou de surpresa e, com a certeza que só os cornos têm, procurou pelo celular que passara a noite toda desligado e ligou, ligou e ligou. Infelizmente, só uma gravação respondia: “Este celular está fora da área de cobertura ou desligado”.

“Tu, tu, tu, tu”. Pela quinta vez ouvia aquele som de telefone ocupado que sempre toca depois da mensagem de “Esse telefone está fora da área de cobertura ou desligado".Iria atrás dessa mulher ou deveria, quem sabe se resignar?

Será que ela o traía há muito tempo e ele sequer suspeitou?. Claro! Aquele jeito de mulher dedicada e ao mesmo tempo um furacão na cama, era tudo para deixá-lo maluco de amor e cego de confiança.

Se não fosse essa a última vez haveria uma outra, quando seria a próxima? E ele acreditando que aquela torta fantástica dos finais de semana e feriados era para feita para Romualdo. Tolo, idiota, cafajeste de quinta categoria. Idiota. Puta que o pariu!

Calçou de novo os sapatos, e nervoso mal conseguiu dar nós nos cadarços. Assim, meio sem voz, Romualdo voltou para a rua. Pegou um táxi e se mandou para a casa da sogra.

Acordou a velha com uma insistente campainha às sete da manhã e disparou:

- Cadê sua filha?

‘Eu é que sei? A mulher é sua”, respondeu a senhora.

- Não é mais minha mulher, é só filha sua. Mas como ela não está aqui?

- Não está, ora... O que houve Romualdo?

- Nada, não houve nada.

E saiu de novo, antes que a dona Rosinha terminasse de lhe oferecer um café, essas coisas. Faminto, agora andava já sem dinheiro para o táxi e decidiu ir até o ponto de ônibus. “Ela não podia ter feito isso”, pensava mas sem tempo de terminar porque tomou um puxão de lado. Alguém segura a sua mão com força por trás.

Vira-se para ver uma cigana de vestido florido e sorriso desdentado, embora com dois ou três dentões de ouro, outro que parece prata mas de repente é obturação antiga...ela pede para ler sua mão. Transtornado ele deixa, pela primeira vez na vida – já que não acreditava nesse tipo de coisa.

A dupla vai até a escadaria de um prédio e, no cantinho perto da planta que decora a entrada a cigana começa, sob o olhar preguiçoso do porteiro, que assiste à cena da mesinha atrás do vidro:

- Você está sofrendo...
- Sim, sim, estou.
- É dor de amor.
- Como sabe?
- Marianita tudo sabe.

Ele não quer ouvir mais nada. Tira os cinco reais que lhe restam no bolso e entrega para a mulher.

Resolve voltar à pé para casa. Não se conforma. Súbito, tem uma idéia. Talvez ainda exista uma chance. “Não vou perder minha mulher assim, fácil. Ainda resta o cartão de crédito”, agora liberado pela operadora depois dele ter suado sangue para pagar a fatura do mês passado.

Entra na joalheria e escolhe um par de brincos de ouro – o mais bonito da vitrine. Quase dois mil reais. “Tomara que funcione, nem sei como vai ser se ela me trocar por aquele infeliz da cueca”, pensou.

Chega em casa, todo suado. Abre a porta e Marta está na sala, com a cara amarrada. Ele não diz nada antes de estender o presente com as mãos, como um menino.

- Olha, é para você.

Ela pega o presente, abre, e um sorriso se abre, seguido de um abraço carinhoso. Marta vai logo experimentar, e volta do quarto radiante com o brinco na orelha.

- É lindo, amor.

Ele, meio confuso, mas feliz da vida, diz sem jeito:

- Você merece muito mais.

Ela senta no sofá e diz para ele que na noite passada nem esperou ele chegar. Teve que sair, por volta das 21 horas, para acompanhar uma amiga até a Santa Casa. Esquecera de levar o celular, até porque nem ia adiantar. Estava completamente sem bateria.

- A mãe dela teve um AVC e a minha amiga, a Suzana, lembra? - Ele faz um gesto afirmativo com a cabeça. Marta continua:

- Pois, é, ela estava muito deprimida, e me pediu para acompanhá-la... Fiz companhia para ela a noite toda. Estou um caco e agora posso finalmente dormir um pouco. Espero que não fique chateado, mas pouco antes de sair dei uma faxina na casa e usei uma cueca sua para limpar o banheiro. Está toda manchada de água sanitária, além de ter acumulado sujeira do chão, das paredes... É melhor jogar fora.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Pesadelo



Fim da linha. Não tinha mais jeito, estava encurralado em um lugar escuro e fétido, depois de uma fuga mal empreendida por vales e montanhas que nem pode olhar direito tamanho era o pânico de ser apanhado.

Desceu barrancos, atravessou corredeiras a nado, pulou cercas e muros, correu dos cães, desviou-se das pedras e outros objetos atirados em sua direção. Horas e horas correndo, alta adrenalina, o coração querendo sair pela garganta.

Não tinha coragem de olhar para trás, a ameaça cada vez mais próxima. Momentos de agonia, desespero e um sofrimento sem fim. Olhou para o lado, numa tentativa ainda de encontrar uma saída. Não dava para enxergar nada, era o breu.

Encostou-se no paredão úmido e suas mãos sentiram o musgo agarrado na pedra, uma fortaleza vertical onde era impossível uma escalada salvadora. Suava frio e já não raciocinava. Nem sabia como entrara em tamanha enrascada.

Um grito. Foi o que lhe restou fazer. Um grito que lhe saiu das entranhas e expulsou os demônios aprisionados no peito. Um grito de som indescritível, que ecoou no paredão e que fez de repente surgir um clarão acima da cabeça e que foi tomando conta do espaço em torno daquele corpo estremecido de horror.

Foi quando acordou assustado depois do sono pesado e um ou mais pesadelos dos quais nem se lembrava direito. Apenas desse, o mais recente, pouco antes de despertar. E foi o suficiente para lhe resgatar um suspiro de alívio. Levantou-se e foi até o banheiro lavar o rosto, escovar os dentes, tirar da boca o ranço e ver a própria cara no espelho.

No espelho, um bilhete colado com chiclete: “Adeus”. Sentou-se no vaso e chorou feito criança. O fim, agora, era real. A dor que sentia também.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A burrice da alma



A burrice da alma corresponde a um estado de invalidez. Cega os sentidos e endurece o coração. Impede que percebamos as sutilezas dos discursos, as nuances dos desenhos, as maneirices dos gestos.

A burrice da alma é uma espécie de cegueira, induzida pelas falsas certezas e aprisionada pela lógica. Manipulada pelos lugares-comuns da existência. E alimentada pela crença no óbvio.

A burrice da alma é uma espécie de surdez. Esquecemos que da vida nada se leva, apesar de termos ouvido isso inúmeras vezes. Negamos ao outro uma segunda chance, quando acreditamos ter ouvido o suficiente para nos fazer crer que o outro é a causa de nossos males.

A burrice da alma não tem limites, cresce como erva e se espalha como fumaça. Aumenta na mesma proporção em que deixamos de vivenciar pequenas emoções. Começa não sabemos como nem quando, e se fortalece sem que nos demos conta, mutilando os sentimentos que possam, de alguma forma, ameaçar e confundir nossas convicções.

A burrice da alma só pode ser combatida se permitirmos que uma lágrima escorra sem culpa nem vergonha. Somente quando me deixo distrair sem preocupação nem pressa, posso enxergar além do horizonte delimitado pelas minhas crenças. Apenas quando percebo que alguns momentos encerram um saber íntimo do qual só o ser humano é capaz. Viver é compreender que a vida é frágil e bela, ainda que nos exija estar sempre de pé todos dos dias, por mais que isso seja uma rotina indesejável.

A burrice da alma é um fardo que não precisamos carregar, mas que dele não abrimos mão por medo do desconhecido.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A lei



O homem tinha o rosto atordoado. Fora parado pela polícia e tinha que se explicar. Estava em um fusca velho (39 anos era a idade do carro), apresentava sinais de embriaguêz detectado pelo bafômetro que não se recusara a soprar. “Está certo, está certo. Eu to errado, está certo”, dizia entre soluços e lágrimas à repórter de TV que aparecera rápido. Era o tipo de situação que interessa, rende matéria, porque é muito engraçado.

“Se o sujeito soprar o bafômetro mostra, se não soprar esconde, coloca um efeito, esconde o rosto”. A regra do telejornal é clara. Não se sabe qual o princípio que rege esse tipo de postura, mas é a lei. E o coitado teve a cara estampada para deleite dos que se divertiam vendo a cena de gosto duvidoso.

Pouco depois, outra pauta: um acidente com um caminhão de eletrodomésticos que teve a carga saqueada por motoristas que passavam pela BR. A maioria em bons carros (seguramente com menos de 39 anos de uso – ao contrário do fusca) e que pararam e colocaram no porta-malas as telas de LCD, home-teathers e outros brinquedinhos novinhos em folha. Foram interceptados pela Polícia Rodoviária Federal. Agora, a ordem era inversa: evita mostrar os rostos, são suspeitos, estão protegidos pela prerrogativa de que ninguém é culpado antes de condenação formal pela Justiça.

A matéria é exibida sem que essas pessoas sejam expostas, afinal, existe o risco de um processo com fins indenizatórios. Na sala de exibição, ninguém diz nada, a matéria não tem o mesmo apelo da anterior. É assim…

Tive pena do homem do bafômetro, por mais que saiba que é perigosíssimo dirigir depois de beber. Mas também fiquei desapontado diante dessa covardia que é proteger quem representa ameaça – mais precisamente ameaça financeira ao patrão em caso de processo na justiça. E me pergunto que justiça é essa?

A resposta vem logo: a mesma justiça que oprime os fracos, sem recursos, sem cultura, sem respaldo, sem conhecimento, sem dinheiro, sem amigos na imprensa, sem esperança, sem nada. E que beneficia os minimamente preparados para se defender, até mesmo quando estão descumprindo a lei.