A conversa se estendeu e o a noite chegou rápida. Riam bastante das noitadas, das festas, da vida de cidade pequena, tudo agora era só lembrança, assunto de amigos.
Daniel olhava a cidade que dali do alto da subida para o campo de aviação dava a falsa impressão de ser plana e bem maior do que era de fato.
“Fora, somos livres para falar o que quisermos; podemos até mudar o tamanho de nossa aldeia. Dentro, estamos inexoravelmente presos de alguma forma a um velho código de normas - que apesar de andar meio caduco ainda funciona”, diz Sônia em meio a um riso solto.
Daniel agora sente-se privilegiado. Pode contemplar o rosto da mulher que ama com o céu escuro atrás formando um tapete pontilhado de estrelas. A noite vista daquele lugar, longe da cidade encravada entre os morros e cafezais ficava mais bela.
“Um sobe-e-desce que não acaba. É impossível qualquer percurso em linha reta, seja em que direção for”, Sônia fala e Daniel responde afirmativamente com a cabeça, conheciam bem aquelas terras.
Vista de cima a cúpula da igreja em destaque, símbolo da influência católica ainda muito presente na vida do povo, mas agora enfraquecida. Resultado da debandada de muitos fiéis para igrejas concorrentes e também da sensação de impotência diante de novos tempos e costumes
- A vida aqui ficou mais corrida; e como em todo lugar as pessoas estão fragilizadas pelo medo da violência.
- Não acho que seja só isso. O pessoal só pensa em trabalhar, ganhar dinheiro, comprar carro novo, casa nova...há um exibicionismo irritante hoje em dia! O dinheiro pelo dinheiro, como se prosperidade fosse apenas ter dinheiro!
Para mim a prosperidade é resultado da soma de esforços, individuais ou em conjunto, vontade de fazer, inteligência, abnegação, paixão... Mas ora, as pessoas atualmente batem palmas para ladrão?! Como se roubar fosse bonito!
- Tranqüilidade absoluta não há mais, nem aqui. As casas, que antigamente ficavam de portas abertas até tarde da noite agora ficam fechadas o dia inteiro; têm grades e cercas elétricas, circuito de TV e Pit Bull no jardim”, diz Sônia em tom queixoso.
Daniel muda o tom da conversa mas não o assunto. “Essa coisa de portas e janelas abertas me lembra aquela época em que voltávamos para casa de madrugada e as fofoqueiras ficavam prestando atenção. No dia seguinte, sempre rolava de alguém chegar e contar que ouviu falar de histórias esquisitas, mas que não acreditavam e então vieram saber da gente mesmo se era verdade ou não.”
- E então desconfiávamos daquele papo “sincero’.
- Na verdade era um ‘verde’ para tentar descobrir mais alguma coisa sobre a gente.
- Negócio de fofoqueiro profissional, pode crer!
- Escutavam pela metade e depois deturpavam tudo. A dona Zelma e o “seu” Rafael eram os piores. Para eles, os caras sempre eram maconheiros e as meninas, putas. Independente de qualquer coisa! Bastava estar na rua rindo em voz alta...
- Geralmente com uma latinha de cerveja na mão.
- Lembra daquele lance do Dr. Otelo, que colocou uma vez no jornal que ia viajar para a Europa com a família e depois assaltaram a casa dele?
- Meu Deus, é mesmo...Colocou no jornal que ia ficar 30 dias fora.
- Vagabundo foi lá e fez a limpeza!
Gargalhadas entremeadas pelo tragar do cigarro e bruscamente interrompidas pelo cantar de pneus alguns metros abaixo de onde estavam.
Daniel se estica para ver o que acontece e apenas consegue ver dois homens jogarem um saco preto da ponte. O embrulho cai no riacho e afunda, depois volta a boiar e desce o curso d’água em boa velocidade, ajudado pela correnteza.
Volta-se apressado e com os dedos na boca e pede silêncio a Sônia, que ainda sussurra: “É o carro do Dr. Otelo!”
(continua)
Mais que depressa, a dupla abandona o mirante e toma o caminho em direção às bicicletas. Atrás deles a noite de lua cheia ilumina o imenso pasto disposto entre as pequenas colinas de Gaspar Lopes.
No caminho de volta pela estrada de terra, o vento frio corta o rosto na descida da ladeira de cascalho, cheia de curvas.
As bicicletas descem espalhando poeira no bambuzal que espreita, silencioso. O vento canta entre as árvores de copa farta e, àquela hora da noite, sombras de todos os tamanhos aparecem no chão, aumentando ainda mais a sensação de que algo de sinistro estava no ar.
Uma noite longa. Nenhum deles dormiu e as horas foram pesadas, misteriosas e tanto mais amedrontadoras quanto mais a imaginação insistia em criar histórias e inventar personagens daquele enredo de filme policial.
A manhã se aproxima. O barulho da passarinhada se mistura aos latidos dos cães e cantar dos galos nos quintais. A peãozada que trabalha na roça levanta cedo e espalha conversa pelas ruas de pedra ainda úmidas pelo orvalho que caiu em Gaspar Lopes.
O pequeno comércio começa a funcionar e logo de manhã corre um forte boato de que Dr. Otelo havia desaparecido.
- Mas não é possível, falei com ele ontem na barbearia!
- Fez questão de ir à missa das 7, como de costume.
- E a família?
- Os dois filhos viajaram bem cedo, estavam de camionete e abasteceram lá no posto.
- Misericórdia...
E a boataria se espalhou tão rapidamente que chegou até a igreja. O padre - muito consciencioso e temente de falar alguma inverdade, afinal, era boato, fez apenas leve menção do ocorrido no sermão.
“Pela alma daqueles que partem daqui, subitamente...”, disse com a voz trêmula, olhando de canto de olho para os parentes do pseudo-morto. Estavam muito calados e demasiado tranquilos para quem vivia uma tragédia familiar daquela magnitude, pensou o padre e metade da igreja. Àquela altura a informação praticamente já era de domínio público.
Daniel e Sônia se encontraram por volta do meio-dia, na lanchonete da praça.
- E aí, Dani, como é que fica?
- Estou com os nervos à flor da pele. Dormi mal, estou mal... Não posso ficar calada, afinal vi com meus próprios olhos! E você também, Daniel!
Olhava para o amigo com a convicção dos que têm a Verdade e a Justiça como aliados.
- Mas e se não for...
- Como assim, Daniel!? Parece minha mãe. Quando contei para ela, riu de mim, disse que estava vendo coisas...
- Você contou para sua mãe?
- Contei.
- E hoje ela foi lá em casa.
- E daí?
- Acho que ela comentou com a minha mãe, meus tios também estavam acordados. E sabe como é, né?
Os dois ainda divergiam sobre a conveniência de depor, contar tudo ao delegado, quando o Dr. Otelo passa ao lado, bem disposto, vestido de bermuda, chinelo de dedos e uma camisa velha.
- Bom dia, meninos. Estou procurando pelo Zequinha Veterinário.
Eram palavras ditas pelo homem que até pouco tempo era um defunto. Havia perdido o cão que mais gostava, Negão, um labrador enorme que morreu no dia anterior, vítima de mal ignorado.
- Estou macho com uns camaradas da fazenda, que pegaram o bicho, meteram num saco preto e desovaram no rio! Isso é coisa que se faça??
Diante daquele casalzinho sem fala, desceu a calçada a perguntar pelo tal veterinário, porque tinha medo dos outros cães contraírem também essa doença que mata. O que os olhos veem pode não ser que o coração sente, assim é que pareceu para Daniel e Sônia. E a vida em Gaspar Lopes seguiu sem pressa, ao sabor do vento e das histórias.